De mãos para o Alto
Abriu as mãos, expôs os braços ao alto, engoliu em seco. Paulatinamente amaciou os esperançados devotos à sua frente prostrados. Perdeu o olhar pela porta entreaberta do templo. Lá fora, oh lá fora era o Mundo!...
Desceu a cabeça e pousou os olhos na santa escritura, palavras graciosas seguiam-se em fila indiana.
Uma bonomia, uma terna macieza lhe percorreu a face.
Com uma firmeza inabalável, começou a recitar o santíssimo texto.
À sua frente também havia quem escutasse a beleza do sentido, entre outros atarefados a bater no peito, a tirar as medidas da túnica, a lamentar a vela ainda agora apagada, as flores já um pouco murchas.
Já houve quem nos peixes tenha encontrado melhores ouvintes, ali poucos havia!
Com uma forte voz, lenta, pausada e concisa, foi apregoando aquela herança que havia ficado escrita. Eram palavras significativas, enfeitadas e entrelaçadas que diziam o que não diziam, sempre mais ricas do que era acessível a alguém pouco atento.
Ia recitando aquelas palavras quase sem olhar o papel, tantas vezes já as lera. Já tantos as haviam escutado, bem menos capazes de as resumir. Os seus olhos, esperançados, lançavam feixes de luz às crianças que no banco da frente esperavam o amém final. Era lá fora que estavam as suas almas, não ali, naquela casa sombria que era chamada a casa de Deus. Se me fosse dada a permissão de ter uma casa, certamente que seria mais acolhedora, menos fria, menos gigante, mais envolvente. O Deus devia de ser triste, com uma casa daquelas onde tantas lamentações, e tão poucas alegrias se depositavam. Pai com um filho pregado numa cruz, ali ao alcance de todos - todos deviam saber que aquele homem que ali continuava pregado, com as mãos rasgadas e ensanguentadas, quase nu ao sabor dos ares sempre frios, aquele homem que ali sempre permanecia, havia capitulado em favor dos seus pecados, tinha no corpo ali depauperado o peso dum mundo cruel.
Lá fora, por detrás daquela réstia de luz, havia um mundo mais claro, mais luminoso, mais aconchegante. O Deus quando lá ia fora - não era possível que estivesse sempre ali, naquela angustiante enchente de devotos, sempre a trocar ofertas e sacrifícios por favores - devia de ficar mais feliz, banhado pela justeza daqueles raios de sol, que por ele haviam sido criados. Deus era o criador do mundo e em troca os homens haviam sobreposto aqueles pedaços grandes de pedra amontoada, haviam deixado poucos buracos por onde pudesse a luz entrar. E era aquela a casa do Deus.
O Sangue e o Corpo de Cristo, em sacrifício de nós, pregado na cruz, morto e ressuscitado, feito à semelhança do Pai, nosso sempre irmão, de todos irmão, sem que todos se encontrem como irmãos.
Pela sua fé fazem os homens aqueles templos de pedra fria, fazem guerras - até lhes chamam guerras santas! Trucidam barbaramente outros homens, mas nunca os lembram, antes os feitos históricos, as grandes conquistas. Os que pereceram foram um mal menor, do seu sangue nasceu um lugar na história - Deus dê paz às suas almas.
E vem o Amém final. Um sopro e uma comedida felicidade acolhe os fiéis. Vêm em magotes cá para fora, aliviados dos seus pecados, prontos para novos e muitos. Ainda às portas do templo e, já o cochiço dá ares de mestria.
- A filha da Sra Antónia está bonita, aquele vestidito fica-lhe que nem a um anjo (que Deus a proteja e não deixe que se torne anjinha e cochicheira tais mães protectoras).
- Olhem, olhem, olhem para aquilo, é o filho do Sr. Manel das vinhas, aquilo é que está grande, já se amanda às raparigas, é tal filho tal pai.
- E viram a malvada da Ti Rosália, ainda ontem foi uma pouca vergonha com a cunhada, aquilo precisava era duma cachaporra pela cabeça abaixo - puta desavergonhada.
Tirada a túnica, os paramentos cuidadosamente guardados, um olhar sério e interrogativo passou minuciosamente pelos cantos daquela limpa e asseada sacristia. Um adeus quase idolatrado lhe deu o sacristão, homem devoto, fervoroso criado da casa de Deus.
Retirando-se da sacristia foi-se deslocando para a saída. Ajoelhou-se delicadamente perante o Senhor e ficou por momentos pensativo: óh Pai, dá a este teu filho a Tua apaziguante benção. Não deixeis nunca que os meus pensamentos se afastem do caminho eterno, dos actos não preciseis de Vos preocupardes, a minha pudica e humilde presença jamais será maculada.
Dai-me, Vos peço humildemente, uma santa graça, uma habilidade nas palavras, uma inspiração nas homilias. Sinto que não desperto a atenção dos meus destinatários, não sei que mais fazer, que mais ler, que mais aprender. Ocorre-me que seja a leitura, ela mesma, a culpada! Bem sabes que escritos tenho disfarçadamente espreitado! Sinto uma curiosidade que já se vem sentindo insatisfeita. Dai-me a inspiração e afastai-me das trevas, este filho vos suplica. Talvez seja melhor deixar?me de leituras, e não alimentar esta obsessiva busca duma forma algo parecida com uma intuição, uma premunição, enfim, acho que me procuro desculpar, a verdade é que sinto muitas dúvidas na minha capacidade interventiva, sinto-me incapaz de construir uma alternativa à mediocridade que todos os dias vejo à minha frente. Tende paciência comigo, deve de ser alguma fase!
Todos os homens passam fases na sua vida. Começa tudo uma noite. O nosso pai abalroa nossa mãe. Juntam-se as sementes. Passam os dias, e o fruto vai-se transmutando e multiplicando. Depois não vem aquele dia, o dia vermelho. Em vez dele vêm más disposições e enjoos. O nosso pai festeja, aí, aproximando-se, vem o varão, o herdeiro! A mamã vai primeiramente à farmácia com uma amiga, trazem de lá uma espécie de tubo com um líquido e com umas instruções! O líquido muda de cor, fica confirmada a boa nova. Depois vai ao senhor doutor. Faz umas análises e o douto lá confirma aquela coisa da cor. Bem, os dias vão passando e aquela coisa que sou eu, vai ficando grande. A barriga da mãe começa a inchar, e os amigos dizem que ela está de balão. A mamã começa a comer muito e a ficar com umas mamitas muito grandes. Um dia começa aos gritos e o mundo torna-se apertado. Bem o pai vai a correr com ela para o hospital. Depois de ser quase esmagado, o mundo torna-se repenti-namente grande. O raio do douto puxa-me a cabeça, parece parvo, parece a cabeça ir-se separar do corpo! Bem, mal salto cá para fora, o braço direito do douto dá?me uma palmada no rabo. Eu fico lixado, começo aos berros e o gajo ainda por cima fica todo contente! Depois, depois vem o melhor, bem nem em tudo. O que mais gosto é das mamitas da mamã, mas não gosto nada daqueles cocos que me assam o rabo todo. Depois começam a dar-me umas papas que são uma porcaria. Eu começo a ficar grande e um dia vou para uma casa onde estão muitos tipos pequeninos como eu. Óh pá que susto, olha que no terceiro dia vejo uma menina nua, fico afrontadíssimo, ela tem uma ferida! Começo a aprender a falar, a escrever e a ler. Um dia começam a ensinar-me matemática, e eu fico a saber que um mais um é um par, assim como quando fico maior e conheço a Helena. Um dia acho que ela é jeitosa, e começo a ficar com certas manias, pergunto-lhe se ela quer ser minha namorada. Olha é fixe. Brincamos muitas vezes e estudamos juntos. Um dia ao chegar a casa dela fico muito magoado: ela está a tomar banho com o irmão. Ele está para ali a ver as mamitas e a ferida dela. E eu nunca mais consigo brincar com ela. Passo a brincar sozinho, mas nunca mais me esqueço daquela cena. Ela é muito bonita, gosto muito do cabelo dela! Depois mudo de escola e nunca mais consigo brincar com as meninas, torno-me um triste sozinho. Passo a prestar atenção a outras coisas, aprendo muito e começo a praticar desportos. É bom nadar, eu gosto da piscina. É lá que conheço a Joana. Ela é muito bonita de fato de banho. Óh pá começo a sonhar com ela. Um dia convida-me para os anos dela, e eu levo?lhe um boneco e um livro. Ela dá-me um beijo na cara e eu nunca mais a esqueço. Um dia vamos ao cinema só os dois. Ficamos embaraçados por vermos os actores aos beijinhos. Eu depois duma grande luta consigo agarrar?lhe a mão. Quando vou com ela até casa ela dá?me um beijo nos lábios! Nessa noite não durmo, fico acordado a sentir os lábios dela. Depois fico maior, o meu pai vai trabalhar para outra cidade e eu tenho de ir também. é uma crise! Mais tarde começo a trabalhar, e um dia conheço a minha mulher. Um dia vamos dar um passeio. Eu encosto o carro na praia. Damos um beijo que nunca mais acaba e eu, atrevido, coloco a mão na mamita dela e ela não a tira. Hoje, já passados muitos anos, tenho um miúdo muito traquinas que tal como eu é levado do raio, nunca está parado, parece ter bicho carpinteiro tal como o pai.
Tendo reparado como a vida nos escapa entre os dedos, e como a visão dela está completamente errada, como somos iludidos pelas circunstancias, como nos sentimos satisfeitos quando tudo está bem, e como nos sentimos esmagados quando tudo está mal. Tento incutir no meu filho uma capacidade de filtrar a realidade, de buscar nas coisas a sua origem, de vasculhar nos sótãos. As traduções conteem sempre erros e, muitas vezes deixa-se perder o sentido intimo dos originais. A cultura e a história está repleta de traduções. Não reparam nisso os homens, e muitas injustiças se cometem. Formam-se heróis onde heróis não existem, engendram-se criminosos nos mais empenhados concidadãos.
Pelo mundo ando a vaguear, sempre tenho todos como irmãos, tal como me ensinaram na catequese. Mas a catequese tendo um sentido doutrinário, aborda sempre os assuntos numa perspectiva de Adão e Eva, de bem e de mal, de certo e errado. Não existem desculpas, existem pecados. Não existe boa intenção, existe malícia. Não existe originalidade, existe repetição. Para um homem com bicho carpinteiro, acaba a doutrina por tornar-se um tédio. Uma falta de imaginação impera nas religiões, uma forte resistência à inovação, uma negação do neologismo.
Assim, ao olhar os circundantes, a sua escassa interrogação, a forma passiva como aceitam a injustiça de não serem eles mesmos, os imensos equívocos em que persistem, os estereótipos e as ideias fixas, a insensatez e a mediocridade de que se encharcam, fica-me a ideia de que não sabem olhar para dentro de si, não sabem edificar-se, assumir-se e identificar-se com os objectivos que deliniam. Provavelmente de objectivos apenas se apercebem dos sociais, materiais, políticos e religiosos. Um dia os homens desculpam?se dizendo que nada podem fazer, um homem pouco ou nada significa. Não repararam certamente que grandes feitos humanos são iniciados, ou executados por um homem apenas. Um homem pode fazer muita diferença, se ele assim quiser.
Claro que existe um preço a pagar. Antes de se ocupar com os outros cada um deve encontrar-se, juntar as suas forças e construir o seu edifício. A diluição na multidão significa a ausência dos grandes momentos que marcam destaque na vida de cada um.
Os verdadeiros religiosos, aqueles que praticam com os punhos cerrados, e orientam a sua vida pelo sentido em que acreditam, sejam cristãos ou budistas, sabem que é neles que se inicia o sentido, sabem que não existem desculpas, ou são ou não são, o mundo não se compadece com a fraqueza, na luta pelo sentido sobrevivem os mais fortes, os mais persistentes, os outros, diluem-se no colectivo, fundem?se na massa do mundo, no ruído social.
O homem mistura-se no sentido do colectivo, embrenha-se nas ciências, segue empenhadamente a disciplina e a vocação da evolução, ganha habilidades nas técnicas e constrói obsessivamente a ordem global. Por vezes escorrega e suja-se com os resíduos dos bastidores. Olha assustado, umas vezes foge e enxota a sujidade, outras, em jeitos de curiosidade, procura descobrir as peças do labirinto. Entra nos bastidores e percorre fascinado os infindáveis corredores. Dá-lhe a fome, procura o regresso. Uma angústia crescente vai-se apoderando: o regresso não parece estar em sitio algum. O frio e a escuridão da noite envolve-o, encolhe-se no seu interior e olha assustado. Adormece no soalho duro e frio. Um pesadelo emerge no sono. Primeiro conspurcado por imenso terror dá em correr em direcções aleatórias. De todo o lado ocorrem fantasmas e monstros com formas estranhas. Depois enche-se de fúrias e enfrenta todos os bichos que se lhe deparam, tudo parte e desfaz. Imensos berros e gritos desfere em tudo o que lhe tolhe o caminho. Dá-se assim uma imensa desconstrução, os alicerces inculcados pela educação ficam rachados, grandes fendas se tornam visíveis. O passado já não é mais um caminho em direcção ao futuro. Quando finalmente acorda, e percorre uma vez mais os labirintos, mais sereno, mais atencioso, acaba por descortinar a saída dos bastidores, o fim dos corredores intermináveis. Os jeitos de interpretação, a forma de ver, não é jamais a mesma. O mundo toma outros contornos. Está mais calmo, menos apressado, mas também mais afastado do colectivo. Torna-se alheio aos interesses estabelecidos, não se empenha nas tarefas do grupo. O seu caminho torna-se distinto, o mundo espera-o. Não mais se dispersa em objectivos alheios - a meditação, a integração e a busca do sentido último das coisas parece tornar-se a nova tarefa.