quarta-feira, 29 de setembro de 2021

Vírus


Hoje é dia de festa!


Hoje faço cinquenta e cinco anos, vários meses, uns tantos dias, umas poucas de horas, e uns quaisquer minutos.


Tal como eu também Vocês fazem anos. São os Vossos anos, meses, dias, horas e segundos.


Estamos todos de parabéns!


Passou mais de um ano desde  Fevereiro de 2020. Mês em que o dito estafermococo apareceu. E tudo se precipitou numa desatinante sequência de episódios incomuns.

Ocorreram  aniversários normais. Ocorreram acidentes inoportunos. Faleceram entes queridos. Foram sujeitos a intervenções médicas alguns. Estiveram internados uns. Nasceram ou foram adotados outros.

Em resumo aconteceu a todos a Vida! A Vida que nos conduz do embrião, do nascimento, que nos faz passar pelas estações e nos conduz ao dia final, à estação onde termina a viagem.


Parece-me que todos e cada um passou por momentos onde foi herói. E outros momentos onde nada foi e onde algumas vezes não quis ser mais.


A vida pode ser feliz, pode ser enigmática, pode ser difícil, pode ser dura…


E tem sido nestes tempos mais próximos, desafiante, difícil e dura para muitos de nós, em diferentes episódios desta viagem em decurso.


O mundo parece ter ficado virado e fora do norte. O dia a dia foi interrompido e ficámos, atormentados e condicionados a um espaço repentinamente exíguo. Deixámos de nos ver frente a frente e tornamo-nos publicados nos écran dos nossos telemóveis, dos nossos computadores. Passámos a viajar por WiFi e  os carros e os aviões ficaram estacionados.

O bicho invisível a todos assusta. Não sei se pela sua essência se pela sua descrição. 

O Mundo mudou, ou a consciência que dele temos ficou irremediavelmente alterada, redesenhada, ou outra coisa de entendimento intrincado.



José Guilherme | 29.09.2021


Corpo


É um corpo carnudo de aparência angélica feito pelo Deus num momento de grande inspiração. A Criatividade Divina transformou o pedaço de osso da costela numa obra de arte eterna.

Fez a fêmea parecida com o macho. Extensivo um do outro. Encaixam bem sendo de altura próxima e de humores complementares. Um é robusto e áspero, o outro é suave e gracioso. 

O Deus estava deveras bem-disposto e generoso, pois não existirá no universo conhecido algo de tão elegante, tão passível de ser desejável e aspirado.

A pele é suave e deslizante, tem protuberâncias, saliências, curvas, altos e vales de uma geometria simultaneamente simples e intrincada.

Pressente-se na superfície húmida da língua um sabor aromático, um vislumbre de infinito, uma perplexidade inexprimível.

Um desejo crescente, de sentido misterioso, furta-se à lógica instituída do sentido do viver individual e coletivo.

Fecham-se as pálpebras e pressentem-se no interior dos pensamentos imagens movediças, dançantes e saltitantes. Entusiasmam e alimentam energias capazes de percorrer longas distâncias e tempos demorados.

Na história dos tempos vão-se acumulando descrições minuciosas, exemplos múltiplos de formatos, vontades, tendências, cumplicidades, várias e arrastadas.



José Guilherme | 26.07.2017


Morte


Pelos olhos começa o mundo quando eles se abrem. Acontece a vida de forma crescente e contínua.

Pelos olhos se interrompe o mundo quando eles se fecham. Projeta-se a vida no ecrã alimentado pela memória interior.

A vida é uma viagem que começa num olhar que se abre e fecha, e segue numa troca, numa comunhão, num compromisso.

A viagem prossegue entre estações que se sucedem num trajeto que segue as posições num mapa mundo que vai crescendo com o tempo.

Mas um dia os olhos fecham-se e ficam fechados. A luz do mundo não mais entra. A viagem interrompe-se nesse mapa mundo testemunhado pelos olhos. 

Há quem diga que a viagem se transfere e passa para um outro mundo que não se vê com esses olhos biológicos.

Entre os mundos não sobra história, nem notícias. Cada um só se vê a si. Só o Deus pode ver todos os mundos, se Ele, ou os mundos existirem!

A vida fecha-se criando uma ausência que se sente, que fere e agride, muitas vezes.

O tempo, o tempo acrescenta tempo. Um tempo necessário para que a vida prossiga e os olhos se abram e vejam o que está no mundo, e transforme as formas em descrições, em palavras significativas e cheias de volume.

Uns olhos testemunham o que os outros olhos fazem. Os últimos desligam o tempo e fecham o mundo, deixam que os primeiros fiquem encharcados de uma ausência penetrante e corrosiva. Os olhos fazem os químicos internos desnortearem a ordem perfeita e ficarem descontrolados numa fazedura caótica, aleatória, encharcante.

Uma humidade tímida, ansiosa, escorregadia, sai dos olhos, dos olhos que ficam, dos olhos que testemunham a partida dos outros olhos companheiros. Os olhos idealmente comungam aos pares numa dança circulante, abundante, cúmplice.

A partida de uns olhos deixa nos outros olhos um vazio, uma serena lágrima que escorrega pelo rosto, uma solidão que como o nevoeiro se vai dissipando com o passar do tempo…



José Guilherme | 28Set2017


O Cheirinho


Uma vela acende-se no interior de uma vasilha de louça, por cima deposita-se a tarte de cheirinho. A chama da vela lambe o interior da louça fazendo derreter a cera do cheirinho que está por cima. 

Um aroma suave, progressivo, volumoso, inebriante, vai-se libertando da cera à medida que esta se derrete.

As pálpebras recolhem-se, a visão diminui e o olfato cresce, intensifica-se e purifica-se. O aroma progressivo enche o sentido do envolvente de uma forma primeiro anónima, depois mais marcante e mesmo dominante.

O corpo contrai-se, um silêncio interrogativo faz atenção. As mãos, os braços, envolvem o corpo inquieto. Uma energia motivada e agitante eleva-se e transborda. 

Um estado de liberdade transpirante eclode pela epiderme elevando a percepção do mundo.

Pelo nariz entra uma fragrância que faz forte o sentido, faz apertados os dedos dobrados, faz rijos os braços envolventes. No peito forma-se uma força expansiva. No pensamento crescem faíscas.

Uma fantasia saltitante, agitada, feliz, sorridente, imagina uma interação de olhares, de sentidos cúmplices.

Um abraço aproxima, envolve, toca, faz adivinhar, dispara, enche, desatina e aquieta. 

Um desejo explode, impõe, adivinha, imagina, súplica.

Um cheirinho faz surgir uma explosão de sentidos que propaga pelo espaço uma imposição inquietante, uma imposição tranquilizadora.

Os olhos fecham-se e abre-se uma consciência expansiva



José Guilherme | 31.10.2017


quarta-feira, 26 de julho de 2017

Paixão


Uma força intensa propaga-se pelo corpo, eclode no interior dos músculos, rebenta no interior dos pensamentos velozes, expande-se rapidamente pelo interior do corpo e nasce pela epiderme.

É uma felicidade quando o dia a dia se desenrola num espírito de paixão.

Essa paixão que ocorre entre episódios de vida privada e se propaga pelos momentos da vida profissional.  

Essa paixão que alimenta a visão positiva, o sentido otimista, o desejo de prolongamento. A vontade de repetir, de continuar, de refazer, de insistir, de ir mais além.

A paixão que afasta o desaire, a frustração, o cansaço, o sentido de inquietude e de ansiedade.

Quando se ausenta, quando escasseia, fica tudo difícil, fica tudo num nunca mais terminar.

Sem paixão apela-se à paciência, à persistência intolerável. O tempo torna-se arrastado e demora a chegar lá.

Como criar de novo a paixão? Como voltar ao animo feliz, ingénuo, expansivo.

Faz falta essa paixão locomotora, esse gerador de criatividade agitada.

É preciso parar, olhar para muitos lados, insistir, ferrar os olhos nos sentidos.

O que se passa? Porra, onde está o raio da paixão. Exige-se que venha, depressa, com postura e volume.

Sem paixão tudo fica com um sentido desfocado, provinciano, limitado, áspero.

Não passa de uma decisão! É preciso decidir que é tempo de paixão. Com coragem e persistência.

Mas é difícil a coragem e o sentido verdadeiro da intenção de decisão.



José Guilherme | 26.07.2017

Lágrima



Uma lagrima escorre pelo rosto doloroso, pelo rosto quase sem expressão, quase como um espelho fustigado pelos vapores da sauna húmida.

Noutras ocasiões, também uma lágrima escorreu pelo rosto, então brilhante, cheio de uma alegria camuflada em expressões vincadas na face esquiva.

Uma e outra lágrima, são faces da mesma moeda, ou então talvez de moedas distintas, em localizações, e tempos afastados.

A história das lágrimas arrasta-se pelo calendário longo, e às vezes apenas pelo tempo curto dos ponteiros num relógio caseiro.

Os olhos prolongam-se pela paisagem longa, tristes ou alegres, depende da face, ou das faces de moedas talvez distantes.

Uma lagrima espelha o mistério do sentido do interior do ser onde essa lágrima brota. Reflete o bom sentir, abundante, ou o sentir apertado pela ansiedade eminente.

Uma lagrima expressa a desesperança apertada dentro da consciência do interior do ser. Ou, a alegria das fronteiras dilatadas pela relatividade do sentir.

O ser sente uma necessidade desatinante de chorar, um desespero incerto de exteriorizar a angustia amarfanhante que lhe enche a alma.

O ser sente uma necessidade transbordante de chorar, uma alegria desmedida de exteriorizar a felicidade envolvente que lhe preenche a alma.

A lágrima dá lugar a um olhar prolongado que, como o feixe do farol, varre o horizonte de forma certa e infalível.



José Guilherme | 12.07.2017

sexta-feira, 30 de junho de 2017

Beijo



Fecho os olhos e revivo a energia intensa que percorre todo o corpo quando os lábios se encontram devagarinho. Pequenas faíscas propagam-se pela superfície da pele.

No caldeirão da memória misturam-se químicos inebriantes.

Os lábios tocam-se devagarinho, beliscam-se, esfregam-se, trincam-se, humedecem-se, colam-se, amordaçam-se, comprimem-se, e debatem-se numa luta frenética, acelerante, engrandecedora.

Quero beijar incessantemente, com ferocidade, mas também com ternura e veludo. 

Quero encostar, quero percentir, quero beber.

Quero saborear com a língua, apalpar os dentes, interagir e partilhar.

Quero imaginar a macieza, o sabor intenso.

Quero dar um beijo.

Quero receber um beijo.

Quero usufruir do beijo.

Quero oferecer o beijo.

Quero desfrutar, quero oferecer.

Quero aquietar o sentir, fechar os olhos, imaginar o sabor, o calor, o volume, e adormecer com o sorriso tranquilo de quem dá e recebe o primeiro beijo grande….


Guilherme | 29Jun2017

Desejo intenso



Um desejo intenso e perturbador expande-se no meu interior. Uma sensação inquietante corre entre a fronteira palpável do consciente e o nevoeiro camuflante do inconsciente.

As pálpebras obscurecem momentaneamente a certeza do visível, invadindo a câmera interior com um crepitar de chama que lambe as paredes delimitadoras da arquitetura interna.

A mão fica tensa, contraída. Os dedos como que agarram uma imagem que se forma no pensamento. Os músculos contraem e apertam.

O desejo incerto, mas feroz, acutila o sentido do envolvente. O desejo rasga o sentir do corpo. A fronteira entre a consciência do interior e a presença do exterior.

O desejo desatina e doí.

O desejo morde com obstinação.

O desejo quer.

O desejo persiste e insiste.

Eu quero o desejo, eu desejo o desejo, eu angustio e sinto a falta desse desejo que às vezes não mais é desejo.

Oh desejo desejável não me deixes nesta ausência do desejo que já estou farto de desejar.
Tanto desejo, tanta ferocidade, e no fim uma angústia pela felicidade que o desejo dá.

Desejo meu deixa-me partilhar-te com aqueles que tanto desejo.

Fico extenuado de tanto desejar e tanto conter o ímpeto da partilha desse desejo intenso.

Quero desejar tanto que tanto transborde esse desejo que tanto se torne desejado esse meu desejo.

Guilherme 29Jun2017


quarta-feira, 21 de junho de 2017

Apagar o lixo


Um monte de pastas, folhas acumuladas, espalhadas pelo chão, amontoadas sobre a mesa.

Os olhos saltam de uma pasta para a outra, procurando perceber onde começar.

Imagens distantes vão-se insinuando em frente dos olhos. Os documentos induzem memórias, momentos distintos confundidos, sobrepostos, disformes, tímidos, difíceis de perceber num primeiro instante.

Os olhos vagueiam hesitantes e um sentido de confusão vai conduzindo a uma visão, um filme sequencial que se projeta simultaneamente lento e rápido, numa forma tão clara quando turva.

É uma amalgama disforme, que amordaça, angustia, compromete.

Uma energia crescente acutila o desejo de esmagar, triturar, desfazer em pedaços.

Abre-se um saco grande, e agarra-se uma pasta, uma qualquer, a que está mais próxima. Abre-se e agarra-se um maço de folhas que se desfolham rapidamente e com uma convicção hesitante rasgam-se ao meio.

Rasgam-se ao meio e ao meio e ao meio, umas e mais outras, e depois novamente mais outras, e outras, e outras…

Faíscas apressadas saltitam entre as mãos, nos olhos, na memória. Uma certeza combina com uma dúvida. Mas as folhas vão-se transformando em pedaços de documentos rasgados. Amontoam-se no saco e vão-se transformando num lixo libertador.

A angustia vai-se tornando num conforto. As memórias vão-se libertando e vai sobrando novo espaço para novas memórias.

Uma sensação de libertação vai crescendo conforme os arquivos emagrecem e se transformam num lixo que pode ser deitado fora.

Não é fácil prescindir desses documentos pregados na história. Parece sempre que fazem falta, ou que vão ser precisos para alguma coisa importante. Arrastam-se, ocupam muito espaço, cultivam microrganismos e aprisionam a memória. Mantém-nos reféns duma continuidade absorvente, vigilante, limitadora.

É bom emagrecer e prescindir dessas toxinas que enchem o nosso corpo com limitações.


José Guilherme | 13.06.2017

quinta-feira, 8 de junho de 2017

Sexo


Quero fazer amor, quero fazer sexo, quero sentir a paixão intensa, quero usufruir da empolgante magia das hormonas agitadas, o êxtase extrovertido da faísca que saltita na superfície crispada da epiderme.

Sinto o sabor perfumado dos lábios que se digladiam, das línguas que se retorcem.

As mãos deambulam e fazem pressão aqui e ali. Os cabelos esvoaçam, e acariciam.

A língua escorrega e lambe loucamente toda a pele desnuda que se atravessa.

Os peitos tenrinhos conquistam-se milimetricamente, terminados nos bicos duros que se sugam obsessivamente em busca da memória primeira, das gotas alimentícias que nascem frugais.

As mãos apertam a cintura firme e desçam pelas ancas abastadas, apalpando as nádegas carnudas, fartas, quentes, sôfregas de dentadinhas lentas e insistentes.

A língua como que despercebida, vai por aqui, vai por ali, desce mais à frente, retrocede mais um pouco, passa à esquerda, desvia-se para a direita, aproxima-se, detém-se, observa, eleva-se, mergulha, espalma-se, e lambe, lambe com prazer intenso e orgulhoso.

O corpo estremece e intensifica-se, sofrendo espasmos elétricos que se propagam e dilatam.

Os lábios, húmidos, dilatados, abrem-se e anseiam.

Os corpos ajustam-se, agarram-se, debatem-se e penetram-se.

Uma onda intensa, obsessiva, poderosa, bombeia e deflagra, lubrificando, aquecendo, enlouquecendo instantaneamente. Os corpos unidos num só, sentem uma eternidade fugidia, ficam estáticos, intensos, humildes, numa meditação eterna.


A solidez da força, da contração, da confiança, do amor próprio engrandecido, acalma e mergulha numa plenitude, numa serenidade que se propaga e pinta o arco-íris com as cores duma visão suavizada e eterna.

quinta-feira, 1 de junho de 2017

Fogo de artifício


Tenho intenso desejo de entrar e sentir a explosão em mil raios luminosos, a projeção da energia contida. Tenho saudades de planar pelas montanhas voluptuosas. Caminhar pelas bordas da nascente. Beber o néctar que brota da fonte onde a vida se torna cheia de sentido e de felicidade. Tenho saudades e um desejo quase doloroso de sentir nos meus dedos, nos meus lábios, nos meus dentes, os botões viçosos da fonte da vida.

Estou sozinho e longe da fonte, por isso apenas sozinho posso expandir-me, mas quando sozinho não estou, a fonte mantem-se absorvida e imperturbável, concentrada na evolução da espécie, nos afazeres muitos, nas exigências das tarefas cansativas e comprometedoras da presença.

Sinto o tormento da história, sou assombrado pelas noites compridas, pela solidão do silêncio, pela incógnita do significado, pela busca da compreensão. Os pontos de referência tornam-se movediços e os modelos seguros ficam desfocados.

O projeto do futuro feito no passado está comprometido no presente. A paixão e o prazer das tarefas do trabalho ficam expostas a sentidos adulterados cujo significado se perde em momentos de tédio, de desilusão, e até de tristeza e frustração.

Onde estou, para onde vou, para onde quero ir?!... Um silêncio desagradável, arrastado e corrosivo vai-se sucedendo num impasse sem final visível.

Procurar, procurar, procurar… encontrar aqui e ali indícios, uns fáceis, outros subtis, outros encriptados, outros difíceis, alguns muito difíceis!


Preciso de uma festa… de um carinho. Fecho os olhos e sinto uma imaginação a passar-me entre os cabelos, a roçar as minhas orelhas, a pressionar a minha nuca. Sinto um sorriso a acariciar-me o rosto, um sussurrar nos meus lábios, uma humidade deslizante a deslocar-se pelo meu peito, a mordiscar o meu botão. Sinto um sobrevoar subtil a tatear o meu sentido adormecido. Sinto um ímpeto crescente a avolumar e tornar poderoso o homem que sou. Quero explodir, quero ficar tranquilo, com um sorriso no rosto a adormecer no colo da amada que me recebe e possui…

José Guilherme 22Mar2017

Memórias


Imagens, muitas imagens. Memórias, muitas memórias. Fotografias misturadas, momentos desfocados e alternados. Impressões marcadas nas imagens que se sucedem, nos pensamentos desordenados que fluem numa sequência tanto marcante quanto fugaz.
É bom ter memórias, é perturbador tê-las. É difícil quando se  misturam e perdem a cronologia.
Nas cores que se misturam estão incorporados sentimentos, estados de espírito, esquecimentos, falhas, pecados, conquistas, desafios, coragens.
As palavras fogem, os sentidos ficam difíceis de discernir, os sons atenuam-se, os olhos perturbam, um sentido de solidão enche o invólucro da célula envolvente.
Uma ideia, uma imagem... marcantes, começam e não terminam, sucedem-se em cadência, enchem e esvaziam, aquietam e perturbam.
Falta um botão que hiberne o pensamento e dê tempo de se resolver e tomar forma mais fácil.

  

30 de Março, José Guilherme

terça-feira, 21 de março de 2017


Estou aqui a olhar à volta. Estou aqui a pensar incessantemente. Estou aqui a desejar encontrar uma forma de abreviar o pensamento. Estou aqui a pensar, a pensar, a pensar…. Forma-se-me no pensamento um desejo de plenitude, uma continuidade de comunhão, de partilha.

Sinto no meu peito, no interior dos meus braços uma escassez, um desejo, uma ausência, um querer intenso, uma crescente imagem mental, uma imaginação, um cheiro virtual, um desejo perturbador de apertar nos meus braços a forma volumosa de outro corpo externo ao meu. Forma-se no meu rosto uma presença subtil que permuta calores e cumplicidades. Desejo, desejo, desejo… o cheiro quente e perfumado que se evapora da superfície macia… dá-me uma quase dor que se entrenha nas células da minha carne e desidrata os caminhos onde se deslocam os eletrões que transportam o sinal da vida, a energia determinada que se irradia da pele sossegada da minha paixão, do amor completo, o amor que se propaga num espaço contiguo ao meu onde o pensamento alcança, mas onde os dedos só alcançam quando o espaço encolhe e  se engelha ao meu redor.

Sinto falta de mim aqui tão perto que estou, sinto falta dos meus amores aqui tão dentro do meu peito mas tão ausentes da minha mão… quero agarrar, quero apertar, quero amaciar…


Escritos, José Guilherme, 21Mar2017

quarta-feira, 6 de junho de 2007



O mar da Figueira e os seus calhaus que enchem a alma!!!.....
Passa a noite e passa o sono, anda por aqui ao lado mas não se deixa aproximar. Pelos olhos fechados deambulam imagens, pelos dedos passam cabelos compridos, um rosto tranquilo, uns lábios serenos. As mãos sentem a macieza e o volume, os lábios sugam botões entumecidos, a língua saboreia o odor, quente que se desprende da pele aquietada. E vai o sono adiado, persistem imaginações companheiras...

quinta-feira, 27 de novembro de 2003

Significado

Por onde tem andado o significado das coisas?
O significado é intrinseco às coisas, e como tal, e como elas, anda por aí? Ou, de outra forma, o significado e as coisas são distintos. As coisas são elas mesmas e o significado somos nós, ou o conceito que das coisas fazemos.
Porquê coisas, significados, ou nós; entidades fazedoras de conceitos, com os quais enchemos tudo o que tocamos? Para que serve tudo isso?
O sol comanda as disposições, as coisas sustentam o espaço, e os significados conquistam multidões. E onde está o ser, como unidade individual cheia de possibilidades, muitas das vezes deixadas esquecidas, exactamente porque as coisas, os significados, encharcam tudo, e tudo obscurecem.
Quero procurar, quero encontrar, quero empurrar do caminho as coisas muitas, os significados empastados, os conceitos assumidos.
Vamos criar, compor, inventar, ser unos e múltiplos. Vamos concentrar e unir a coisa no seu significado - construir uma coisa melhor.
Alguém me ouve neste canto ínfimo do mundo? Faz sentido ser ouvido? Porque quererá alguém ser ouvido?
Tudo se resume ao significado das coisas, e de novo estamos no inicio, como a pescadinha de rabo na boca.

segunda-feira, 10 de novembro de 2003

Pode alguém aprender a ser sensato, equilibrado, ponderado, sem ficar enrolado numa teia de ilusões, numa sequência não programada de episódios sequenciais, sem fim, nem vislumbre dum destino certo.
A vida pode ser pautada por uma constante reacção a eventos sucessivamente aleatórios, ou de outra forma, uma construção acumulada em direcção a um destino estrategicamente elaborado.
Ou nada disso, e tudo não passa de uma construção mental composta de palavras e de imagens disformes.
Sucedem-se momentos, episódios constantes e obsessivos. Sucede-se um cansaço, uma consciência crescente de algo que começa e não se perspectiva num final palpável...

Vou-me daqui, mas voltarei mais tarde. Fecho os olhos e mergulho no silêncio pausado onde deambulam os significados de mim...

terça-feira, 2 de setembro de 2003

Excertos dum eventual romance

V

Profundamente distanciado dos longínquos tormentos que o devastaram nas passadas horas, mergulhou sem intensão nas virgens folhas, lavrando sementeiras ricas de vida.
Muitas vezes confidenciava dessa forma as suas mais intimas inquietações, tornando imortal a forma documentada dum fluir agitado e quiçá, por outrem precipitado em acontecimentos parecíveis com um acaso muito menos que tal, antes meticulosamente engendrado com função mais acedível a quem quer que possua todas as faculdades, porque do acaso e do além só sem faculdades lá se chega!
Perdido em considerações mais dolorentas que inteligíveis dissecou em jeitos de cientista (porque à ciência não afligem os tormentos da imaginação, da angústia), o sentido duma vida e onde pode essa vida conduzir, bem entendido que só da sua vida se podia tratar, sim, porque lá existia outra, além da sua?!
A liberdade pode ser uma forma de atingir a essência do homem, ou antes um equívoco, uma intolerância, uma ilusão dimanada por correntes políticas, por lucubrações filosóficas, arbítrios com pretenções universalisantes.
Foi deslizando a caneta pelo papel e foram assim nascendo inesperadas habilidades.
"Um dia nasci, nu e feio, sem tendências e sem visão, do mundo nada mais me recebeu do que um apertão seguido duma ausência de limite envolvente, e duma palmada na parte de trás que me assustou, e me fez berrar argumentos que ninguém entendeu, achando que era sinal de prestabilidade e de boa criação. Enfim, eu que era pequenino e achava tudo uma enormidade, lá me fiquei que era preciso paciência e uma dose de tolerância para entender os inormissímos que se aproveitavam dos pequeníssimos para darem um ar da sua ciência, sim, porque mais que tudo, na sua inquestionável estupidez encontravam explicações para a sua especialíssima inteligência."
As palavras iam assim construindo parágrafos de que gostava, mas só até outros momentos, depois deixava de gostar, pareciam-lhe, acima de tudo, exercícios de mau gosto, sinais de pretenciosismo, mesmo até duma petulância excessiva. Não eram mais do que uma arrogância escravizante que submetia os imagináveis leitores ao doloroso exercício duma leitura do horrível!
Além disso, era uma comédia de verbos mal colocados, de palavras com letras trocadas, duma ausência embaraçante de sinais, duma hesitação de pontos e de virgulas, duma tímida vergonha de postos e virgulas e de dois pontos sempre no sítio menos necessário.

Pois, escrever era uma catarse nunca uma arte!

Depois, algum depois depois, voltava a gostar, mas só até não gostar outra vez. Achava que tinha alguma hipótese, alguma arte, alguma mestria ainda não revelada mas já percentida. Escrevia muitas vezes, mais do que aquelas em que rasgava em gritos de censura o que havia escrito num daqueles momentos, ou nos outros, fruto de alguma exaltação.
Sem aviso, uma melancolia alienante e viscosa apedrejou-o deixando-o sem presença, perdido num espaço em que o tempo não tinha acesso, um mergulho catatónico em águas sem história. O nevoeiro cerrado tardou em dissipar-se, escorrendo na sua face o enigma da vida - o sentido último do caos universal.
Uma dor imensa apartou-se do seu peito, os seus braços lamentaram a ausência esmagadora. Os fragmentos duma bomba deflagrada à sua frente ainda penetravam a carne, deixando chagas de onde escorriam em rios longas debandas de sangue esfumegante.
Recusava a vida entrando num convento tingido pelas cores da esperança, uma esperança pouco convicta.
Daí a algum tempo entraria no exercício do dever - dever voluntário - de proteger a nação contra os inimigos; mal ela sabia que de inimigos se bastava ela própria! De verde se cobriria e com ele enfrentaria a esperança de ressuscitar um dia mais disponível para enfrentar um destino por ele tecido - uma vez derrubados os Deuses irascíveis!

Deixando inerte o corpo por sobre a aconchegante colcha que cobria a cama companheira, foi cada vez mais lenta e desfocadamente deambulando por pensamentos cujo sentido se emaranhava e se perdia. As pálpebras fecharam-se, a luz esbateu-se, e foi assim acordando num longo e verde campo de batalha; extensos montes cobertos de verdura, semeados de árvores, escondendo soldaditos armados com razões em forma de espadas, fardados de vestes florescentes, comendo maçãs e contando histórias ilariantes.

Lá no longe, onde começava o mundo, vinha correndo, esbaforido, um cavaleiro, uma longa coberta, que, por sobre os seus fortes ombros colocada, deixava no ar um manto esvoaçante. Na mão erguia uma sôfrega pena e, com ela, cortava o ar abrindo caminho até ao destino, criado por um Deus que do outro lado do campo se dedicava atarefado a escrever as memórias duma eternidade.
Quando era chegado mais perto, o cavalo, que há longas horas desbravava desalmadamente terreno, deixou que um casco não se elevasse quanto bastasse, dando uma cambalhota pelo ar, mergulhando de seguida pelo chão a dentro; afogando-se pelas entranhas da terra, caindo de andar em andar até chegar a uma sólida parede, onde se estatelou. Recompondo-se atrapalhadamente, passando os olhos pela penumbra envolvente e embrulhando-se pelo manto, protegendo-se do intenso frio que enchia aquelas medonhas paragens. Não podia ser mais estranho o que sentia, como se o seu corpo fossem as suas vestes. Apalpando a parede onde batera, foi assim, cuidadosamente avançando, sempre ansiando pelo aparecimento de alguma imagem menos soturna, onde pudesse apalpar e ver o seu corpo, tão estranha era a forma como o sentia.
Repentinamente bateu num farto pilar. Contornando-o verificou que este ladeava uma descomunal porta, alta e larga, de aparência fortemente robusta, aqui e além aparelhada de peças de ferro maciço. Aos seus pés depositava-se um austero caminho, calcetado com grandes pedras, encaixadas aparentemente sem qualquer cuidado. Todo aquele cenário lhe causava grande apreensão, nada ali se mostrava agradável. Ficando de pé, pensativo, embrulhando-se intensamente na capa, pois a temperatura além de baixa deixava antever ainda mais frios ares. Um salto desastrado e uma falta de ar, causada pelo acelerante coração, deixaram-no no extremo do caminho por onde havia vindo. Um rouco e desarticulado som ocorria pelo lado oposto. Era o seu cansado cavalo. Ficou ainda mais apreensivo e soturno. O cavalo parecia estar a ficar invisível. Pelo seu corpo parecia adivinhar-se o que estava por detrás. Assustadamente retirou de si a capa e quase não se conteve, ficou como capaz de fugir de si mesmo. Através dele era igualmente possível observar as silhuetas daquele mundo. Não entendendo nada, agasalhou-se e passou em jeitos de cuidado a mão pelo cavalo. Olhou a porta, olhou o caminho. Qual a direcção a seguir? Montou o cavalo companheiro, e foi alguns metros pelo atalho, tentando descobrir onde poderia chega

quarta-feira, 27 de agosto de 2003

Já lá vão uns dias desde que li um artigo na Visão sobre os blogges. Passei pelo Abrupto, espreitei o blogger.com. Experimentei, fiz e desfiz, criei o Aquele Outro, saltou do papel para o écran - até agora textos antigos - a seguir já se verá.
Coloquei um contador, fiquei à espreita. Alguém tem vindo, alguns voltaram. Recebi um e outro email - saltou-me o peito, agitou-se-me a alma.
É tempo de avançar - vamos ver o que se vai suceder; o tempo que de momento é curto esticará - as palavras crescerão.

terça-feira, 19 de agosto de 2003

Aquele espírito

Hoje, estou com aquele espírito AK47; quando ocorre precinto uma regressão à minha infância, aos meus seis anos: vejo então, os gajos da frelimo a passearem as ditas Kalashnikov’s, a darem umas rajadas, umas gargalhadas.
Quando ocorre, o dito espírito, nada mais deve acontecer do que reservar-se o momento às suas razões, ausentar-se do mundo e ficar em silêncio, em busca do entendimento, desmembrando o todo nos seus pedaços constituintes em busca da compreensão.
O sabor a sangue pressente-se na ponta da língua, a memória acutila e faz suores na superfície da pele crispada. O som ressoa e faz tremer a consciência do momento. O medo do então é o medo do agora, os olhos saltitam nervosos no espaço, confunde-se aquele momento com o momento de agora. Faz força o sangue pelas veias, vai rápido levando a vida ao músculo. Fica o músculo pronto a explodir, a levar o corpo até longe onde o som rítmico e martelante não alcança. Ficar longe é bom porque os fragmentos não atingem, logo não furam, fica assim o sangue dentro do corpo, fica o espírito no corpo, fica a alma onde sempre deve estar.

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segunda-feira, 28 de julho de 2003

Uma noite de guerra

São onze horas da noite, estou no quarto de banho, juntamente com a maior parte da 2ª companhia de instrução. Esta noite vamos ter instrução nocturna. Estou a queimar uma rolha com um isqueiro, a tentar fazer algum pó preto para camuflar a cara. Estamos uma cambada de imbecis todos maquilhados de negrume. Os meus olhos vão-se perdendo à medida que a minha branquidão se esmorece e se substitui pela escuridão. Coloco um pedaço de pano preto à volta do pescoço, fico quase invisível no susto da noite. O tempo adquiriu uma estranha velocidade neste sítio. Quando entrei neste inferno, dez minutos eram quase nada. Agora, dez minutos podem ser um horror de tempo. Um homem coberto de lama, toma banho, juntamente com cem outros, num espaço que só dá para quarenta, veste farda sacudida e quase limpa, coloca botas tornadas novamente a brilhar, e ainda fica um minuto no pelotão à espera da arrogância desmedida do sarcástico aspirante. Dez minutos tornam-se suficientes para viver um intenso momento de vida!
Vou ao meu armário, uma obra prima da arrumação! Um armário de ferro ferrugento dividido por mim em andares. Em cima os artigos de higiene, o álcool, o algodão, os pensos, as bugigangas, a pequena caixinha com agulhas e fios de cozer mais a tesoura, e a minha navalha suíça cuidadosamente escondida, os fios e os ganchos para prender cabos de montanhismo, não sei para que servirão, mas mais vale estar prevenido. Entre o topo e o fundo, um espaço no qual um tubo serve para pendurar as calças, as camisas, o cinturão, o camuflado. Em baixo em jeitos de improviso, uma caixa com meias, cuecas e lenços, mais abaixo os calções e camisetas de ginástica e, por fim, o segundo par de botas e as sapatilhas.
Verifiquei se tinha a despercebida navalha no bolso das calças, juntamente com o lenço. Nos bolsos das pernas, uma corda, uma rolha, um isqueiro, um pedaço de vela, um trapo, um pedaço de lápis, um rolo de fita cola preta.
Coloquei o M64: o cinturão com os porta carregadores, os suspensórios com os porta granadas, o cantil, a marmita na pequena mochila juntamente com o capacete. O punhal ficou prezo no porta granadas junto ao coração, no outro lado o pequeno estojo de NBQ , e de lado, à direita, a mascara antigás.
Enfiei o quico na cabeça e agarrei a G3. Coloquei fita preta nalguns pedaços mais brilhantes. Desmontei o guarda mão e meti um pedaço de trapo no interior para evitar qualquer ruído propiciado pela folga entre o guarda mão e o tubo. Apertei o tapa chamas com bastante força, não fosse algum miserável pensar subtraí-lo para me acabar de transformar a vida numa miséria impossível. Coloquei?me na bicha para receber o resto do material. Entrei no depósito de armamento da companhia e gritei o meu número e nome. Uma granada de instrução, dez munições de salva, uma ração de combate, uma bússola e uma carta topográfica. A pistola Walter de 9 milímetros, sem munições, o coldre e o fio de prender a pistola ao corpo. Os comandantes de secção por vezes levavam uma Walter! Estavam outra vez a tramar-me!
Nunca havíamos tido uma instrução nocturna a iniciar-se tão tarde, além disso o dia havia sido estranhamente leve - uma má sensação invadia?nos. Retirei o carregador da G3 e executei as operações de segurança: com a G3 virada para cima, puxei o manobrador à rectaguarda, verifiquei que não existia munição na câmara (o contrário seria, no mínimo, alarmante, e aliás, perfeitamente impossível), dei uma pancada no manobrador. Ele saltou para a frente. Pus a alavanca de segurança na posição de tiro a tiro e dei uma gatilhada. Voltei a colocar a arma na posição de segurança. Toda esta operação era absolutamente desnecessária, mas no entanto obsessivamente obrigatória. Coloquei as dez munições de salva no carregador e depois encaixei o carregador na G3. Nunca havia andado com uma granada ao peito, junto ao coração, por cima do punhal. A ração de combate ficou na bolsa da minha perna esquerda. Estava pronto para a Guerra. Coloquei?me no meu pelotão, éramos ainda só doze, os outros estavam atrasados, má notícia, era o suficiente para estragar a noite a toda a gente.
Os camaradas de pelotão foram chegando e colocando-se na sua posição. O aspirante aproximou?se, vinha de camuflado, com uma pistola metralhadora ao ombro, no rosto uma expressão sádica algo divertida! O filho da puta colocou-se à nossa frente com cara de mau - fazia-nos voltas ao estômago. A noite não se mostrava risonha!
Começou para ali a cantar que os seus queridos meninos ainda não se haviam apercebido que estavam na tropa, aquilo já havia deixado de ser desmamanso de cachopos, para ser uma formatura de homens, ainda não se haviam apercebido, talvez a noite os fizesse compreender melhor a situação. Começámos a ficar nervosos, os dentes já se apertavam. O texugo e o doninha fedorenta ainda não estavam no pelotão, eram sempre os mesmos, eternamente atrasados, ia haver festa.
- Dá licença meu aspirante, apresenta-se soldado recruta.
- Sua abestunta, acaba de lixar os seus camaradas. Podem agradecer ao vosso camarada, vão aprender duma vez por todas que aqui ninguém se atrasa.
- Meta-se no seu lugar, já não o posso ver.
Manifestamente a noite já estava estragada, a noite ia ser negra! Era quase meia-noite. Pelos visto aquilo ia durar até de madrugada.

Apareceu o comandante de companhia, o tenente B. Disse-nos que a 1ª companhia de instrução já estava no mato desde há dois dias. Ia-mos fazer uma marcha até à zona do posto de comando. Lá montaríamos vigilância e passaríamos o resto da noite. Já era tempo de entendermos a nossa posição frente à nação, estávamos ali para defender a nossa pátria, afastar os inimigos e sermos homens. O tempo de sermos cachopos havia ficado à entrada do quartel quando lá entramos pela primeira vez. Chegava de andarmos a brincar.
O nosso aspirante virou-se para nós, e deu-nos as ordens de comando, fomos atrás dele em duas filas indianas até à saída de instrução. Começámos a sair do quartel. O passo era acelerado e o peso não se mostrava desprezível, já todos sabíamos que os quilómetros tendiam a pesar nos ombros, a G3 ia sempre aumentando de peso. Eu como era alto ficava sempre para trás o que não me agradava. À medida que íamos ficando cansados a distancia entre mim e o aspirante ia ficando mais comprida, isso não me agradava mesmo nada. Além disso tinha de ir empurrando os mais fracos, não podia ficar ninguém para trás. Passou-se uma longa hora e o passo sempre acelerado tornava-se cada vez mais difícil. Andámos metidos no meio do mato, por caminhos tortos e desnivelados, pedras e buracos, escuridões e negrumes.
Aproximou-se uma estrada, tínhamos de a passar. Os sargentos e os cabos de instrução cortaram o caminho. Começámos em passo acelerado a atravessar. Aproximou-se um carro a buzinar sem aparência de querer parar. O Tenente B. veio a correr com a Walther em punho, aos berros. O homenzito encolheu-se no seu orgulho e lá parou, não teve outro remédio senão esperar.
O caminho tornava-se cada vez mais difícil. A noite estava muito escura e fria. Nem as técnicas de visão nocturna nos podiam aliviar a paisagem ofuscante. Começámos a subir um monte. De súbito, à nossa frente, um penhasco com uma altura a perder de vista. As nossas pernas vacilaram. Vi-me a conter o terror perante a ideia de ter de escalar aquele precipício.
Afinal contornámos por dois caminhos estreitos, muito inclinados, com muitas pedras e terra solta. Era simples, quem estava mais abaixo apanhava com as pedras e o imenso pó que vinham de cima. Todos tinham o mesmo medo. Se alguém caísse, todos cairiam. Chegava-se ao topo com o coração a querer?se escapar pela boca. Quase me era impossível respirar. Cheguei a pensar que era impossível aguentar tal ritmo cardíaco. Na boca sentia uma papa peganhenta. Não podíamos beber água porque no fim iam verificar se os cantis estavam cheios. E, para beber um golo mais valia aguentar aquela asfixia. Continuámos a progredir. O aspirante mandou parar. Em voz muito baixa disse-nos que nos começávamos a aproximar de território inimigo. A 1ª companhia era o inimigo! A partir dali não podíamos fazer o mínimo ruído. Continuámos mais devagar, com as cautelas possíveis e obrigatórias. Aqueles cuidados eram uma benção para a maioria de nós. Alguns camaradas, porque não aguentavam grandes marchas, utilizavam pensos higiénicos nos calcanhares das botas. Sempre achei que isso era um disparate; assim não habituavam os pés. Se calhasse atravessar-mos um curso de água mais intenso poderia entrar água nas botas; havia de ser bonito fazer uma marcha com aqueles pézinhos delicados empastados em água. Sempre achei que enfrentar a dureza sem mascaras era mais sensato. Começámos a descer por meio de pinheiros. Uns atrás dos outros. Não era ideia saudável alguém perder-se do grupo. Quando chegámos ao fim, começámos a caminhar no interior duma floresta cerrada, cada vez mais lentamente. Comecei a aperceber-me que a tortura tomava novos contornos. Aquele descanso tinha um preço. Começámos a sentir que a noite estava muito fria. A fome começava igualmente a importunar?nos.
Após uma meia hora de lenta progressão, chegámos ao posto de comando, onde ficaríamos. O aspirante dividiu-nos e indicou os lugares onde havíamos de montar os panos de tenda. Cada três homens fazia uma tenda juntando o seus panos. Lá dentro cabiam esses três homens mais o equipamento de combate, as pernas ficavam cá fora! A seguir dividíamos os turnos de vigia e demarcávamos os lugares onde seriam colocados os postos. Fazer uma vigia naquela negridão com a fome, o frio e o sono por companheiros não era coisa fácil. Sentei-me no chão, abri a ração de combate. Não era tarefa pacífica dividir aquelas conservas pelas refeições, especialmente porque nunca sabíamos quando é que teríamos nova ração ou uma refeição cozinhada. Tinha um pacote de le

quarta-feira, 16 de julho de 2003

De mãos para o Alto

Abriu as mãos, expôs os braços ao alto, engoliu em seco. Paulatinamente amaciou os esperançados devotos à sua frente prostrados. Perdeu o olhar pela porta entreaberta do templo. Lá fora, oh lá fora era o Mundo!...
Desceu a cabeça e pousou os olhos na santa escritura, palavras graciosas seguiam-se em fila indiana.
Uma bonomia, uma terna macieza lhe percorreu a face.
Com uma firmeza inabalável, começou a recitar o santíssimo texto.
À sua frente também havia quem escutasse a beleza do sentido, entre outros atarefados a bater no peito, a tirar as medidas da túnica, a lamentar a vela ainda agora apagada, as flores já um pouco murchas.
Já houve quem nos peixes tenha encontrado melhores ouvintes, ali poucos havia!

Com uma forte voz, lenta, pausada e concisa, foi apregoando aquela herança que havia ficado escrita. Eram palavras significativas, enfeitadas e entrelaçadas que diziam o que não diziam, sempre mais ricas do que era acessível a alguém pouco atento.

Ia recitando aquelas palavras quase sem olhar o papel, tantas vezes já as lera. Já tantos as haviam escutado, bem menos capazes de as resumir. Os seus olhos, esperançados, lançavam feixes de luz às crianças que no banco da frente esperavam o amém final. Era lá fora que estavam as suas almas, não ali, naquela casa sombria que era chamada a casa de Deus. Se me fosse dada a permissão de ter uma casa, certamente que seria mais acolhedora, menos fria, menos gigante, mais envolvente. O Deus devia de ser triste, com uma casa daquelas onde tantas lamentações, e tão poucas alegrias se depositavam. Pai com um filho pregado numa cruz, ali ao alcance de todos - todos deviam saber que aquele homem que ali continuava pregado, com as mãos rasgadas e ensanguentadas, quase nu ao sabor dos ares sempre frios, aquele homem que ali sempre permanecia, havia capitulado em favor dos seus pecados, tinha no corpo ali depauperado o peso dum mundo cruel.

Lá fora, por detrás daquela réstia de luz, havia um mundo mais claro, mais luminoso, mais aconchegante. O Deus quando lá ia fora - não era possível que estivesse sempre ali, naquela angustiante enchente de devotos, sempre a trocar ofertas e sacrifícios por favores - devia de ficar mais feliz, banhado pela justeza daqueles raios de sol, que por ele haviam sido criados. Deus era o criador do mundo e em troca os homens haviam sobreposto aqueles pedaços grandes de pedra amontoada, haviam deixado poucos buracos por onde pudesse a luz entrar. E era aquela a casa do Deus.

O Sangue e o Corpo de Cristo, em sacrifício de nós, pregado na cruz, morto e ressuscitado, feito à semelhança do Pai, nosso sempre irmão, de todos irmão, sem que todos se encontrem como irmãos.

Pela sua fé fazem os homens aqueles templos de pedra fria, fazem guerras - até lhes chamam guerras santas! Trucidam barbaramente outros homens, mas nunca os lembram, antes os feitos históricos, as grandes conquistas. Os que pereceram foram um mal menor, do seu sangue nasceu um lugar na história - Deus dê paz às suas almas.

E vem o Amém final. Um sopro e uma comedida felicidade acolhe os fiéis. Vêm em magotes cá para fora, aliviados dos seus pecados, prontos para novos e muitos. Ainda às portas do templo e, já o cochiço dá ares de mestria.
- A filha da Sra Antónia está bonita, aquele vestidito fica-lhe que nem a um anjo (que Deus a proteja e não deixe que se torne anjinha e cochicheira tais mães protectoras).
- Olhem, olhem, olhem para aquilo, é o filho do Sr. Manel das vinhas, aquilo é que está grande, já se amanda às raparigas, é tal filho tal pai.
- E viram a malvada da Ti Rosália, ainda ontem foi uma pouca vergonha com a cunhada, aquilo precisava era duma cachaporra pela cabeça abaixo - puta desavergonhada.

Tirada a túnica, os paramentos cuidadosamente guardados, um olhar sério e interrogativo passou minuciosamente pelos cantos daquela limpa e asseada sacristia. Um adeus quase idolatrado lhe deu o sacristão, homem devoto, fervoroso criado da casa de Deus.

Retirando-se da sacristia foi-se deslocando para a saída. Ajoelhou-se delicadamente perante o Senhor e ficou por momentos pensativo: óh Pai, dá a este teu filho a Tua apaziguante benção. Não deixeis nunca que os meus pensamentos se afastem do caminho eterno, dos actos não preciseis de Vos preocupardes, a minha pudica e humilde presença jamais será maculada.

Dai-me, Vos peço humildemente, uma santa graça, uma habilidade nas palavras, uma inspiração nas homilias. Sinto que não desperto a atenção dos meus destinatários, não sei que mais fazer, que mais ler, que mais aprender. Ocorre-me que seja a leitura, ela mesma, a culpada! Bem sabes que escritos tenho disfarçadamente espreitado! Sinto uma curiosidade que já se vem sentindo insatisfeita. Dai-me a inspiração e afastai-me das trevas, este filho vos suplica. Talvez seja melhor deixar?me de leituras, e não alimentar esta obsessiva busca duma forma algo parecida com uma intuição, uma premunição, enfim, acho que me procuro desculpar, a verdade é que sinto muitas dúvidas na minha capacidade interventiva, sinto-me incapaz de construir uma alternativa à mediocridade que todos os dias vejo à minha frente. Tende paciência comigo, deve de ser alguma fase!
Todos os homens passam fases na sua vida. Começa tudo uma noite. O nosso pai abalroa nossa mãe. Juntam-se as sementes. Passam os dias, e o fruto vai-se transmutando e multiplicando. Depois não vem aquele dia, o dia vermelho. Em vez dele vêm más disposições e enjoos. O nosso pai festeja, aí, aproximando-se, vem o varão, o herdeiro! A mamã vai primeiramente à farmácia com uma amiga, trazem de lá uma espécie de tubo com um líquido e com umas instruções! O líquido muda de cor, fica confirmada a boa nova. Depois vai ao senhor doutor. Faz umas análises e o douto lá confirma aquela coisa da cor. Bem, os dias vão passando e aquela coisa que sou eu, vai ficando grande. A barriga da mãe começa a inchar, e os amigos dizem que ela está de balão. A mamã começa a comer muito e a ficar com umas mamitas muito grandes. Um dia começa aos gritos e o mundo torna-se apertado. Bem o pai vai a correr com ela para o hospital. Depois de ser quase esmagado, o mundo torna-se repenti-namente grande. O raio do douto puxa-me a cabeça, parece parvo, parece a cabeça ir-se separar do corpo! Bem, mal salto cá para fora, o braço direito do douto dá?me uma palmada no rabo. Eu fico lixado, começo aos berros e o gajo ainda por cima fica todo contente! Depois, depois vem o melhor, bem nem em tudo. O que mais gosto é das mamitas da mamã, mas não gosto nada daqueles cocos que me assam o rabo todo. Depois começam a dar-me umas papas que são uma porcaria. Eu começo a ficar grande e um dia vou para uma casa onde estão muitos tipos pequeninos como eu. Óh pá que susto, olha que no terceiro dia vejo uma menina nua, fico afrontadíssimo, ela tem uma ferida! Começo a aprender a falar, a escrever e a ler. Um dia começam a ensinar-me matemática, e eu fico a saber que um mais um é um par, assim como quando fico maior e conheço a Helena. Um dia acho que ela é jeitosa, e começo a ficar com certas manias, pergunto-lhe se ela quer ser minha namorada. Olha é fixe. Brincamos muitas vezes e estudamos juntos. Um dia ao chegar a casa dela fico muito magoado: ela está a tomar banho com o irmão. Ele está para ali a ver as mamitas e a ferida dela. E eu nunca mais consigo brincar com ela. Passo a brincar sozinho, mas nunca mais me esqueço daquela cena. Ela é muito bonita, gosto muito do cabelo dela! Depois mudo de escola e nunca mais consigo brincar com as meninas, torno-me um triste sozinho. Passo a prestar atenção a outras coisas, aprendo muito e começo a praticar desportos. É bom nadar, eu gosto da piscina. É lá que conheço a Joana. Ela é muito bonita de fato de banho. Óh pá começo a sonhar com ela. Um dia convida-me para os anos dela, e eu levo?lhe um boneco e um livro. Ela dá-me um beijo na cara e eu nunca mais a esqueço. Um dia vamos ao cinema só os dois. Ficamos embaraçados por vermos os actores aos beijinhos. Eu depois duma grande luta consigo agarrar?lhe a mão. Quando vou com ela até casa ela dá?me um beijo nos lábios! Nessa noite não durmo, fico acordado a sentir os lábios dela. Depois fico maior, o meu pai vai trabalhar para outra cidade e eu tenho de ir também. é uma crise! Mais tarde começo a trabalhar, e um dia conheço a minha mulher. Um dia vamos dar um passeio. Eu encosto o carro na praia. Damos um beijo que nunca mais acaba e eu, atrevido, coloco a mão na mamita dela e ela não a tira. Hoje, já passados muitos anos, tenho um miúdo muito traquinas que tal como eu é levado do raio, nunca está parado, parece ter bicho carpinteiro tal como o pai.
Tendo reparado como a vida nos escapa entre os dedos, e como a visão dela está completamente errada, como somos iludidos pelas circunstancias, como nos sentimos satisfeitos quando tudo está bem, e como nos sentimos esmagados quando tudo está mal. Tento incutir no meu filho uma capacidade de filtrar a realidade, de buscar nas coisas a sua origem, de vasculhar nos sótãos. As traduções conteem sempre erros e, muitas vezes deixa-se perder o sentido intimo dos originais. A cultura e a história está repleta de traduções. Não reparam nisso os homens, e muitas injustiças se cometem. Formam-se heróis onde heróis não existem, engendram-se criminosos nos mais empenhados concidadãos.
Pelo mundo ando a vaguear, sempre tenho todos como irmãos, tal como me ensinaram na catequese. Mas a catequese tendo um sentido doutrinário, aborda sempre os assuntos numa perspectiva de Adão e Eva, de bem e de mal, de certo e errado. Não existem desculpas, existem pecados. Não existe boa intenção, existe malícia. Não existe originalidade, existe repetição. Para um homem com bicho carpinteiro, acaba a doutrina por tornar-se um tédio. Uma falta de imaginação impera nas religiões, uma forte resistência à inovação, uma negação do neologismo.
Assim, ao olhar os circundantes, a sua escassa interrogação, a forma passiva como aceitam a injustiça de não serem eles mesmos, os imensos equívocos em que persistem, os estereótipos e as ideias fixas, a insensatez e a mediocridade de que se encharcam, fica-me a ideia de que não sabem olhar para dentro de si, não sabem edificar-se, assumir-se e identificar-se com os objectivos que deliniam. Provavelmente de objectivos apenas se apercebem dos sociais, materiais, políticos e religiosos. Um dia os homens desculpam?se dizendo que nada podem fazer, um homem pouco ou nada significa. Não repararam certamente que grandes feitos humanos são iniciados, ou executados por um homem apenas. Um homem pode fazer muita diferença, se ele assim quiser.
Claro que existe um preço a pagar. Antes de se ocupar com os outros cada um deve encontrar-se, juntar as suas forças e construir o seu edifício. A diluição na multidão significa a ausência dos grandes momentos que marcam destaque na vida de cada um.
Os verdadeiros religiosos, aqueles que praticam com os punhos cerrados, e orientam a sua vida pelo sentido em que acreditam, sejam cristãos ou budistas, sabem que é neles que se inicia o sentido, sabem que não existem desculpas, ou são ou não são, o mundo não se compadece com a fraqueza, na luta pelo sentido sobrevivem os mais fortes, os mais persistentes, os outros, diluem-se no colectivo, fundem?se na massa do mundo, no ruído social.
O homem mistura-se no sentido do colectivo, embrenha-se nas ciências, segue empenhadamente a disciplina e a vocação da evolução, ganha habilidades nas técnicas e constrói obsessivamente a ordem global. Por vezes escorrega e suja-se com os resíduos dos bastidores. Olha assustado, umas vezes foge e enxota a sujidade, outras, em jeitos de curiosidade, procura descobrir as peças do labirinto. Entra nos bastidores e percorre fascinado os infindáveis corredores. Dá-lhe a fome, procura o regresso. Uma angústia crescente vai-se apoderando: o regresso não parece estar em sitio algum. O frio e a escuridão da noite envolve-o, encolhe-se no seu interior e olha assustado. Adormece no soalho duro e frio. Um pesadelo emerge no sono. Primeiro conspurcado por imenso terror dá em correr em direcções aleatórias. De todo o lado ocorrem fantasmas e monstros com formas estranhas. Depois enche-se de fúrias e enfrenta todos os bichos que se lhe deparam, tudo parte e desfaz. Imensos berros e gritos desfere em tudo o que lhe tolhe o caminho. Dá-se assim uma imensa desconstrução, os alicerces inculcados pela educação ficam rachados, grandes fendas se tornam visíveis. O passado já não é mais um caminho em direcção ao futuro. Quando finalmente acorda, e percorre uma vez mais os labirintos, mais sereno, mais atencioso, acaba por descortinar a saída dos bastidores, o fim dos corredores intermináveis. Os jeitos de interpretação, a forma de ver, não é jamais a mesma. O mundo toma outros contornos. Está mais calmo, menos apressado, mas também mais afastado do colectivo. Torna-se alheio aos interesses estabelecidos, não se empenha nas tarefas do grupo. O seu caminho torna-se distinto, o mundo espera-o. Não mais se dispersa em objectivos alheios - a meditação, a integração e a busca do sentido último das coisas parece tornar-se a nova tarefa.

Um gajo bera

Demorados e longínquos tempos, tempos de brandura, de ingenuidade, de encaixe - Eu era um tipo Bom! Agora já não sou um tipo bom, agora sou um gajo Mau! Completamente bera, irascível, prepotente.
Naqueles tempos acreditava na sinceridade, na amizade, nos belos e sensíveis gestos. Agora sou um eremita, longínquo, a milhas de qualquer amabilidade hipócrita.
Gostava de ser simpático, era todo cheio de amabilidades - coisa lamentável! Agora sou frio, um cara de pau, um guerreiro incontornável, em suma, finalmente sou um sacana dum gajo mesmo mau!

Vou dar cabo dos tipos, raios os partam. Não se pode ser bom e cheio de amor. Vomitam anátemas pegajosos, repelentes e viscosas substâncias mal cheirosas, cheias de pelos, de sangues, de merdas nauseabundas.

Não sei bem como o faça. Enche-se-me o rosto dum sorriso sádico. Antigamente eu era tão somente um lamentável masoquista, sempre disposto a sofrer as arrogâncias e as más educações! Venham os novos tempos e o homem chegará à Lua. Oh Júlio, quão distantes os teus contos visionários. Oh Verne, pudesse eu ter um poucochito da tua mestria e já na Lua estaria, distante destes cabrões!

Já a imagem sempre tensa da morte não me chega como retaliação - fácil coisa, algo de mais apetitoso se impõe; um trote de tiros de caçadeira nas pernas desses coisos. Aqueles deliciosos buracos a escorrerem debandas de sangue envenenado. Aqueles atrozes gritos. Oh Deus, que me dão escrúpulos e me arrependo de ser Mau.

Primeiro será necessário fazer uma minuciosa intervenção cirúrgica - extaiam-me a disciplinada e obsessiva consciência. Que chatice, um sacana como eu nem a liberdade de ser Mau pode ter. A bondade arrepiante imiscui?se e dá-se ares de comprometida. Diabos a levem, quero trocidar-lhes as liberdades, as facilidades, as arrogâncias, quero rasgar-lhes o ventre e puxar-lhes a entranhas.

Malditos sejam...

Não posso ser Mau, não me está cá dentro.

Mal se sai um pouquito da comummente considerada razoabilidade, e logo vêm eles com o dedo apontado. Ainda por cima fica-se esmagado com um sentido de pecado. Míseros abutres. A censura da putrefacta inquisição sempre a ditar as febris regras. Não pode um homem ser livre e já de pecado está escarrado.

Naqueles tempos eram os homens mais humildes e fraternos. Podia-se sempre confiar e sempre contar com a sua presença construtiva. Agora, vá um homem necessitar e não ter contrapartidas e, já na borda da valeta, terá de rastejar.

Não se entenda nunca que estes protestos se inserem no tempo presente, nestes momentos em ocorrência, são antes manifestações intemporais. Já em tempos ancestrais se dedicava o avô primeiro a especulações e a reclamações sobre as virtudes, e o estar do homem entre os seus. Achava ele que já era tempo de deixarem o mundo das bestas e se tornarem mais conciliáveis com os semelhantes. Julgava ele que o futuro se encarregaria de repor a justa ordem. Não sabia que a ordem humana, mais do que fruto dum progresso, é um atributo metafísico carente de visão global, facilmente escassa, parcamente ao alcance do comum mortal. Impõe-se a necessidade de uma consciência mais vasta, mais auto?analisável, mais humilde e menos orgulhosa. Não se entenda nunca essa humildade necessariamente como uma vantagem, e o mesmo orgulho como uma desvantagem, esse seria um equívoco lamentável: um e outro se devem conciliar na justa medida (ocorre questionar que é isso de justa medida!), não sejam nunca nem uma fácil arrogância, nem um lamentável enrugamento.
Aos homens falta uma saudável fraternidade, uma visão menos localizada, uma maior empatia e uma maior capacidade de globalizar e estender a sua consciência para além dos limites do imediato e do lucrativo.

O Homem tão facilmente se dispersa no mundo social, todo cheio de inutilidades, de mediocridades sempre cultivadas, de inseguros recursos pessoais por preguiças e esbanjamentos. Facilmente sacode o capote, e mais facilmente se dilui em questões espampanantes cujo proveito dificilmente poderá ser palpável.

Mas raios me levem, aqui me dou ares de profeta, de defensor de causas difíceis e trabalhosas! Nada mais lucrarei do que amochar as arrogâncias e os desferidos dedos acutilantes.

Um poeta da tristeza

De poetas já o mundo está cheio, da tristeza, já empestado, da alegria vai parco, ou iludido, da intemperança, nem apraz falar; porquê toda esta sensaboria, esta salada de palavras propícia à má digestão? Ora, já que sou triste pois que faça com ela alguma coisa, se me falhar a digestão, abundam os sais, frescos matam a sede no calor abafante das entranhas.
Por muito que escarafunche não encontro motivo para este mau estar - sou mentiroso pois claro - mas assim são os narradores, digo agraciados pela subtil arte da imaginação, amaciando pelas palavras os feitos, por vezes tão pouco honestos. Mas não deitem piropos, olhem-se e digam, não se acham escritores? Não, não!
Há, pois, têm medo! Não é para menos, isto de escrever o que não se pensa e pensar o que não se escreve é perigoso. Mais perigoso nas entrelinhas do que nas linhas propriamente. Nestes tempos de hipocrisia e falsas amabilidades não convirá certamente ser-se descuidado, a guilhotina é impiedosa, perdão, digo, a sociedade é intolerante,

Mas dizia eu de tristeza, eu o narrador, claro: o Outro é tão tolo que não se pode contar com ele.
A tristeza é uma espécie indefinida de estado de alma! Às vezes é momentânea, outras vezes é menos que tal, mais complicada, é uma espécie de estadia demorada, chegou um dia, um outro irá. Pode até ser um saudosismo, uma melancolia equivocadamente tida como uma serenidade tingida de felicidade.


Lembra-me uma carta que em tempos envei ao meu amigo Raskolnikov e que tanto e nada diz, mas talvez indicie alguma resposta.

"Meu contingente amigo

Leva-me o decoro e o meu convulso desejo de partilha, a dirigir-te estas hesitantes e grosseiras palavras. Certamente já de mim não esperavas mais do que o esquecimento. Uma hostil e hedionda consciência gravemente me ditou este parco resíduo de mim mesmo. O mais triste dos teus patéticos amigos. Francamente não tenhas esperanças nesta infectada correspondência!

Delinia-se-me a origem da minha tão insistentemente apontada tristeza! Acho (ehehehe) que ficou comprometida a minha capacidade de ser feliz ao ter tomado contacto com outra realidade com a qual não posso facilmente entrar em comunhão, mas que irremediavelmente comprometeu a minha visão passiva do mundo. Um mundo outro, de contornos não terminados, nem mesmo objectivos, algo quimérico, repleto de sombras e de ausências, bem como de professias e de esperanças - sendo este matéria, ocorre-me se não será o outro uma forma desviada de anti-matéria; doi-me a alma e afasta-se-me o espírito!

O caminho dos outros não pode nunca confundir-se com o meu, sendo o deles fácil na medida em que se pauta pela coordenação com o exterior; bem mais difícil o meu, imiscuído nos meandros soturnos dum interior muito menos que passivo.
Em busca do mundo, do objectivo e do significado, maltratado pelos equívocos ostensivamente prepetados por este mundo mais tangente, com contornos de realidade últimos, não já suficientes a um visionário gnóstico e, eternamente desacertado pelos episódios dum viver diário que, não é nunca suficiente para acalmar a agitação descaracterizada do meu frágil ser, sempre e, incomodantemente traumatizado pelas palavras rápidas dos acompanhantes de jornada.

Aqui vim e daqui me escapo, amigo meu, tão incompreensível quanto eu, fica-te com uma esperança deste teu desonesto e ineficaz companheiro.

Comentários de um enigmático especialista

"Podemos atrás verificar a materialização da tristeza no rosto escorrido dum homem magoado. Algures se iniciou a dramática busca que conduz este homem à profunda desconstrução que o assedia. Incansavelmente olha os homens, nos seus olhos sempre uma esperança, mas vai-se gastando, iludida sempre, pois a lado algum parece chegar. Longas ciências, minuciosas filosofias, sagradas histórias; todas obras de homens, nenhuma a sua obra! Perdido sempre, sempre a correr, em lado algum a paz e a serenidade. Um dia um, no noutro dia outro, estados de espírito vagos e distantes uns dos outros; perdido em si, múltiplo e sem fim.
Pudesse Deus livrá-lo de si próprio e mais descansado ficaria, diluído o seu olhar nas paisagens celestes, repousadas na longa planície que se estende aos pés da grande montanha."

O especialista,
Fulano tal,
Doutorado em ciências Terminadas

O sonho

Já tarde recolheu ao leito, manchado pela repentina mágoa. Uma dor, uma tristeza, uma solidão. Aprende-se sofregamente que algumas dores não podem jamais ser partilhadas, são formas de solidão sem contornos palpáveis, misturadas com imagens desfocadas dum sempre passado sem história, impossível de ser concretamente descrita.
Só a imaginada companhia dos Deuses, pode dar consolo a quem na tristeza parece encontrar um peito maternal, uma melancolia reconfortante.
Repousada a cabeça no leito, fechados os olhos, esticado o corpo dorido. Sons sem forma se recolhem entre sombras deslocantes que no espaço se sucedem.
Uma espécie não concretizada de lágrima acompanha-o da vigília ao espaço intemporal.

Já vai longe o início do sono. Aos pés dum anfitiatro colocado até ao infinito, um altar flutuante contém sobre si o Grande Livro. De mãos abertas, em geito de cruz, faz das palavras mensagens com destino ao infinito, até ao último dos ouvintes. Postos à sua frente, todos cobertos por uma túnica arrastada. Nenhum deles com rosto, apenas personagens que estão ali à sua frente perfeitamente alinhados, de cabeças erguidas, uma ordem eterna.
Ao seu lado, o António Vieira, humilde e atencioso, em vestimenta de acólito, executanto eficazmente os gestos do culto, recolhendo atenciosamente as ideias da santa homilia, um dia necessárias para falar aos peixes, já que aos homens pouco adiantará fazê-lo.
Um Homem sempre tem de ter discípulos, o eterno retorno dum estereótipo cultivado pelos génios da solidão, exilados dum tempo que ainda não existe, perdidos nas consequências dum mundo onde abundam os abutres duma inquisição sempre ansiosa das suas carnes mutiladas.

Um homem escreve, um discurso sem ouvintes, um suplício repleto de dores, uma forma deslocada de vingança, resíduos dum escarro, um punhal violentamente desferido em peitos secos, sem arte - viventes por feitio.
Um homem escreve, no monte lança a lenha, no centro o ceptro onde amarrarão as suas ensanguentadas mãos. Pegarão fogo e assarão a sua carne que servirão no grande banquete dessa corja de abutres - raça infectada, náusea apodrecida.

Um som desfere no sonho uma cacetada, aturdido abre os olhos. Ainda amordaçados os olhos reparam que vem de um sonho... um sonho!!...
Encontros com a loucura - uma forma equivocada de arte.

Uma violenta dor de cabeça abala o seu existencialismo pouco tolerante, bifurcando as antes seguras razões.
Todo o homem busca o acordo inequívoco dos seus pares, mostrando, orgulhoso, o seu peito, forma última duma explicação para o seu direito sobre si mesmo.
Como se vê a braços com uma incrédula presença - não mais beneficiando daquela ingénua esperança, segundo a qual a boa vontade e o diálogo eram a salvação última para a humanidade - não sabe o que pensar, quando, distraído, e sem convicção, olha aqueles galos, fingindo rituais de vida, bicando aqui, bicando ali, galando agora, galando depois, cacarejando antes, cacarejando a seguir - bípedes com asas que não elevam aos céus, não fosse a tolice pesada e as aspirações tão duras quanto o peso das matérias primas do luxo ostensivo que exalam.

Ocorre-lhe uma lufada de repiques praguejados por uma arma automática que enche o espaço, constrangendo os tenros corações. Enchendo de esperança a sua muito característica estupidez. Só derrotável essa estupidez instituída a peso duma incomodativa ameaça, capaz de desviar a atenção da luxuria para o valor humano e para o sabor duma vida sistematicamente desperdiçada e abafada com inutilidades todas tão escusadas.
É-se tão estupido que já se duvida da própria existencia. Ocorrem à memória aqueles palermas que ostensivamente se impõem à audiência como que detentores de alguma forma inabalável de razão.
A inteligência é em muito uma construção - como pode da luxuria e do desperdício edificar-se algo tão menos que uma sumptuosa tolice.

Oh, distracção desfavorável, esqueci-me do ansiolitico, esta profissão de narrador absorve-me tanto, que me esqueço das minhas inconsequências psicológicas. Desde aquele dia em que dei em perturbado, passei a ficar encharcado de químicos, insistem que é uma forma de doença. Não percebo, acho-os tão pouco razoáveis que juraria que se livram de si mesmo nos ditos seres alterados.
Projectam-se os desconsolos da vida no bode expiatório, dá-se-lhe uma palmada no retirado, e ele que vá pastar para outras terras.
Mas deixai-me ser louco que com a loucura me entendo eu bem. Melhor antídoto não me acho capaz de forjar, dos venenos não pode o homem fugir quando sorrateiramente o atacam na fragilidade do sono. Na vigília há que achar a cura que enforque esses ignóbeis maus tratos - a loucura, pois claro, não será pior doença - eles assim lhe chamam - que outras tais que por aí andam e que tão fugazes são aos seus olhos, não as vendo já mais, porque contaminados já sem elas não passam. A má língua, a inveja, e a hipocrisia são por eles tão eximiamente utilizadas que a sinceridade e a boa vontade não parecem nunca mais favoráveis.

Credo que fastio, tantos livros lidos já me tornam no adorado D.Quixote; se não vou atrás dos moínhos de límpidas velas erguidas, amando-me ao mar, aos peixes melhores companheiros, mais atenciosos, mais humildes nos sermões um dia apregoados.


A loucura torna-se uma figura paradigmática, entenda-se não a "loucura" da psiquiatria mas antes a "loucura" da literatura.
Trata-se de duas "loucuras" distintas. Uma surgida dum diagnóstico apoiado num tendencialmente eficaz corpo de saber, sujeita à incorporação de substâncias químicas que a diluem e a esbatem. A outra criadora duma forma etérea, ou efémera, avessa às exigências desconcertantes dum sedentarismo social e intelectual, contrário ao nomadismo visionário inconformado do dito "louco".
Esta última "loucura" chega a ser a marca que distingue da multidão o ser engendrador de histórias, o seu construtor de aforismos, de equações, de fórmulas, de tratados. A muita dedicação e a figura distante e, muitas vezes desconcertante, e mesmo pouco cuidada, do artista, ou do cientista, afixa-lhe no frontispício a etiqueta tal como é identificado.
O ser dotado de sensibilidade artística chega a colocar na loucura o seu objectivo, ou porque é equivocadamente identificada com princípios sagrados, ou porque o vocabulário tem significados outros do que aqueles comumente encontrados e explanados nos dicionários. É que o escritor por vezes reconstroi as palavras correndo até o risco de ficar fora de sintonia com os seus congéneres.
A "loucura" não é afinal a loucura, mas antes uma palavra com novos e múltiplos significados, às vezes mesmo com um cunho de suicídio interminável, só acessíveis a alguns seres mergulhados nas águas turvadas da construção dos significados.
Ao sair da prisão do mundo social público, o louco ingressa na própria masmorra que é a materialização de si mesmo, isto, pelo que é visionável externamente. Interiormente embarca numa viagem ao mundo fantástico das imagens, dos sons e das ideias.

A invisibilidade do discurso, dizendo tudo aquilo que não diz, presenciando latentemente as mensagens linguísticas ou não, exteriorizadas pelo autor do texto. Sentenciando o escrevente a uma fuga dimanada de dentro de si, rasteirando-o, ultrapassando as suas conscientes habilidades - a sua técnica.
O louco psiquiátrico ofende pela persistência e profundidade do olhar, assustando os que se colocam no seu aparente alcance, ficando, assim, indefesos, ao dispor duma infiltração sobrenatural que rebusca os segredos intimo das gavetas constituintes do aparelho psíquico, eficazmente guardadas da luz do dia por um aparelho repressor sem medida, mas que pode defender do sobrenatural !?
Para muitos homens persiste a figura da loucura como um paradigma da verdade - o louco é aquele que escapa à delimitação do real, imposta por uma herança protectora, que ao pretender afastar o homem das suas angustias tangentes, ou de outra forma imateriais, o mergulhou numa teia que enrodilhou a sua visão verdadeira e pura das coisas do mundo, criando assim, não as coisas em si, mas uma imagem delas.

Compreender um autor é embarcar numa viagem sem regresso, aquilo que começa por ser a intenção inicial tornar-se-á cada vez mais distante. O crescimento de um autor não é nunca um caminho linear, ou verdadeiramente sustentado ou disciplinado. É antes uma sucessão imprevista de mutações, árduas batalhas, mesmo pesadas solidões, doseadas por estados suicidas ou de desorientação e de desagradada desconstrução porque, para penetrar no sentido mais intimo das coisas, o autor tem de se ver livre das imagens que lhe foram inculcadas pela educação, os limites impostos pela moral e pela ética, tem de perfurar as cascas criadas pela sua aprendizagem, para assim chegar finalmente ao objecto puro. Esta tarefa sempre inacabada conduz provavelmente a uma cruzada angustiantemente gratificante, que momentaneamente afasta dos outros e pode mesmo criar uma áurea de egoísmo, cinismo e falta de amor que não corresponde à alma do viajante. Provavelmente nesta viagem ao intimo do conhecimento muito se perderá, e uma nova imagem do mundo dificultará o pleno diálogo com o outro, pela diferente estrutura que configurará o conhecimento e as suas regras intrinsecas.
Estamos embarcados numa viagem insegura e sem portos visíveis.

Oh, Senhor, já me bate o coração, já me falta um copo quente de leite com chocolate e uma fatia de bolo fumegante. Tudo era mais simples quando o mundo era apenas o quintal onde brincava.

Assim sem mais conclusões do que no inicio, sem nada mais que uma loucura, ficam as considerações precárias e interrogativas - todas as obras ficam ao alcance do inacabado e do derrotável