terça-feira, 2 de setembro de 2003

Excertos dum eventual romance

V

Profundamente distanciado dos longínquos tormentos que o devastaram nas passadas horas, mergulhou sem intensão nas virgens folhas, lavrando sementeiras ricas de vida.
Muitas vezes confidenciava dessa forma as suas mais intimas inquietações, tornando imortal a forma documentada dum fluir agitado e quiçá, por outrem precipitado em acontecimentos parecíveis com um acaso muito menos que tal, antes meticulosamente engendrado com função mais acedível a quem quer que possua todas as faculdades, porque do acaso e do além só sem faculdades lá se chega!
Perdido em considerações mais dolorentas que inteligíveis dissecou em jeitos de cientista (porque à ciência não afligem os tormentos da imaginação, da angústia), o sentido duma vida e onde pode essa vida conduzir, bem entendido que só da sua vida se podia tratar, sim, porque lá existia outra, além da sua?!
A liberdade pode ser uma forma de atingir a essência do homem, ou antes um equívoco, uma intolerância, uma ilusão dimanada por correntes políticas, por lucubrações filosóficas, arbítrios com pretenções universalisantes.
Foi deslizando a caneta pelo papel e foram assim nascendo inesperadas habilidades.
"Um dia nasci, nu e feio, sem tendências e sem visão, do mundo nada mais me recebeu do que um apertão seguido duma ausência de limite envolvente, e duma palmada na parte de trás que me assustou, e me fez berrar argumentos que ninguém entendeu, achando que era sinal de prestabilidade e de boa criação. Enfim, eu que era pequenino e achava tudo uma enormidade, lá me fiquei que era preciso paciência e uma dose de tolerância para entender os inormissímos que se aproveitavam dos pequeníssimos para darem um ar da sua ciência, sim, porque mais que tudo, na sua inquestionável estupidez encontravam explicações para a sua especialíssima inteligência."
As palavras iam assim construindo parágrafos de que gostava, mas só até outros momentos, depois deixava de gostar, pareciam-lhe, acima de tudo, exercícios de mau gosto, sinais de pretenciosismo, mesmo até duma petulância excessiva. Não eram mais do que uma arrogância escravizante que submetia os imagináveis leitores ao doloroso exercício duma leitura do horrível!
Além disso, era uma comédia de verbos mal colocados, de palavras com letras trocadas, duma ausência embaraçante de sinais, duma hesitação de pontos e de virgulas, duma tímida vergonha de postos e virgulas e de dois pontos sempre no sítio menos necessário.

Pois, escrever era uma catarse nunca uma arte!

Depois, algum depois depois, voltava a gostar, mas só até não gostar outra vez. Achava que tinha alguma hipótese, alguma arte, alguma mestria ainda não revelada mas já percentida. Escrevia muitas vezes, mais do que aquelas em que rasgava em gritos de censura o que havia escrito num daqueles momentos, ou nos outros, fruto de alguma exaltação.
Sem aviso, uma melancolia alienante e viscosa apedrejou-o deixando-o sem presença, perdido num espaço em que o tempo não tinha acesso, um mergulho catatónico em águas sem história. O nevoeiro cerrado tardou em dissipar-se, escorrendo na sua face o enigma da vida - o sentido último do caos universal.
Uma dor imensa apartou-se do seu peito, os seus braços lamentaram a ausência esmagadora. Os fragmentos duma bomba deflagrada à sua frente ainda penetravam a carne, deixando chagas de onde escorriam em rios longas debandas de sangue esfumegante.
Recusava a vida entrando num convento tingido pelas cores da esperança, uma esperança pouco convicta.
Daí a algum tempo entraria no exercício do dever - dever voluntário - de proteger a nação contra os inimigos; mal ela sabia que de inimigos se bastava ela própria! De verde se cobriria e com ele enfrentaria a esperança de ressuscitar um dia mais disponível para enfrentar um destino por ele tecido - uma vez derrubados os Deuses irascíveis!

Deixando inerte o corpo por sobre a aconchegante colcha que cobria a cama companheira, foi cada vez mais lenta e desfocadamente deambulando por pensamentos cujo sentido se emaranhava e se perdia. As pálpebras fecharam-se, a luz esbateu-se, e foi assim acordando num longo e verde campo de batalha; extensos montes cobertos de verdura, semeados de árvores, escondendo soldaditos armados com razões em forma de espadas, fardados de vestes florescentes, comendo maçãs e contando histórias ilariantes.

Lá no longe, onde começava o mundo, vinha correndo, esbaforido, um cavaleiro, uma longa coberta, que, por sobre os seus fortes ombros colocada, deixava no ar um manto esvoaçante. Na mão erguia uma sôfrega pena e, com ela, cortava o ar abrindo caminho até ao destino, criado por um Deus que do outro lado do campo se dedicava atarefado a escrever as memórias duma eternidade.
Quando era chegado mais perto, o cavalo, que há longas horas desbravava desalmadamente terreno, deixou que um casco não se elevasse quanto bastasse, dando uma cambalhota pelo ar, mergulhando de seguida pelo chão a dentro; afogando-se pelas entranhas da terra, caindo de andar em andar até chegar a uma sólida parede, onde se estatelou. Recompondo-se atrapalhadamente, passando os olhos pela penumbra envolvente e embrulhando-se pelo manto, protegendo-se do intenso frio que enchia aquelas medonhas paragens. Não podia ser mais estranho o que sentia, como se o seu corpo fossem as suas vestes. Apalpando a parede onde batera, foi assim, cuidadosamente avançando, sempre ansiando pelo aparecimento de alguma imagem menos soturna, onde pudesse apalpar e ver o seu corpo, tão estranha era a forma como o sentia.
Repentinamente bateu num farto pilar. Contornando-o verificou que este ladeava uma descomunal porta, alta e larga, de aparência fortemente robusta, aqui e além aparelhada de peças de ferro maciço. Aos seus pés depositava-se um austero caminho, calcetado com grandes pedras, encaixadas aparentemente sem qualquer cuidado. Todo aquele cenário lhe causava grande apreensão, nada ali se mostrava agradável. Ficando de pé, pensativo, embrulhando-se intensamente na capa, pois a temperatura além de baixa deixava antever ainda mais frios ares. Um salto desastrado e uma falta de ar, causada pelo acelerante coração, deixaram-no no extremo do caminho por onde havia vindo. Um rouco e desarticulado som ocorria pelo lado oposto. Era o seu cansado cavalo. Ficou ainda mais apreensivo e soturno. O cavalo parecia estar a ficar invisível. Pelo seu corpo parecia adivinhar-se o que estava por detrás. Assustadamente retirou de si a capa e quase não se conteve, ficou como capaz de fugir de si mesmo. Através dele era igualmente possível observar as silhuetas daquele mundo. Não entendendo nada, agasalhou-se e passou em jeitos de cuidado a mão pelo cavalo. Olhou a porta, olhou o caminho. Qual a direcção a seguir? Montou o cavalo companheiro, e foi alguns metros pelo atalho, tentando descobrir onde poderia chega