quarta-feira, 29 de setembro de 2021

Vírus


Hoje é dia de festa!


Hoje faço cinquenta e cinco anos, vários meses, uns tantos dias, umas poucas de horas, e uns quaisquer minutos.


Tal como eu também Vocês fazem anos. São os Vossos anos, meses, dias, horas e segundos.


Estamos todos de parabéns!


Passou mais de um ano desde  Fevereiro de 2020. Mês em que o dito estafermococo apareceu. E tudo se precipitou numa desatinante sequência de episódios incomuns.

Ocorreram  aniversários normais. Ocorreram acidentes inoportunos. Faleceram entes queridos. Foram sujeitos a intervenções médicas alguns. Estiveram internados uns. Nasceram ou foram adotados outros.

Em resumo aconteceu a todos a Vida! A Vida que nos conduz do embrião, do nascimento, que nos faz passar pelas estações e nos conduz ao dia final, à estação onde termina a viagem.


Parece-me que todos e cada um passou por momentos onde foi herói. E outros momentos onde nada foi e onde algumas vezes não quis ser mais.


A vida pode ser feliz, pode ser enigmática, pode ser difícil, pode ser dura…


E tem sido nestes tempos mais próximos, desafiante, difícil e dura para muitos de nós, em diferentes episódios desta viagem em decurso.


O mundo parece ter ficado virado e fora do norte. O dia a dia foi interrompido e ficámos, atormentados e condicionados a um espaço repentinamente exíguo. Deixámos de nos ver frente a frente e tornamo-nos publicados nos écran dos nossos telemóveis, dos nossos computadores. Passámos a viajar por WiFi e  os carros e os aviões ficaram estacionados.

O bicho invisível a todos assusta. Não sei se pela sua essência se pela sua descrição. 

O Mundo mudou, ou a consciência que dele temos ficou irremediavelmente alterada, redesenhada, ou outra coisa de entendimento intrincado.



José Guilherme | 29.09.2021


Corpo


É um corpo carnudo de aparência angélica feito pelo Deus num momento de grande inspiração. A Criatividade Divina transformou o pedaço de osso da costela numa obra de arte eterna.

Fez a fêmea parecida com o macho. Extensivo um do outro. Encaixam bem sendo de altura próxima e de humores complementares. Um é robusto e áspero, o outro é suave e gracioso. 

O Deus estava deveras bem-disposto e generoso, pois não existirá no universo conhecido algo de tão elegante, tão passível de ser desejável e aspirado.

A pele é suave e deslizante, tem protuberâncias, saliências, curvas, altos e vales de uma geometria simultaneamente simples e intrincada.

Pressente-se na superfície húmida da língua um sabor aromático, um vislumbre de infinito, uma perplexidade inexprimível.

Um desejo crescente, de sentido misterioso, furta-se à lógica instituída do sentido do viver individual e coletivo.

Fecham-se as pálpebras e pressentem-se no interior dos pensamentos imagens movediças, dançantes e saltitantes. Entusiasmam e alimentam energias capazes de percorrer longas distâncias e tempos demorados.

Na história dos tempos vão-se acumulando descrições minuciosas, exemplos múltiplos de formatos, vontades, tendências, cumplicidades, várias e arrastadas.



José Guilherme | 26.07.2017


Morte


Pelos olhos começa o mundo quando eles se abrem. Acontece a vida de forma crescente e contínua.

Pelos olhos se interrompe o mundo quando eles se fecham. Projeta-se a vida no ecrã alimentado pela memória interior.

A vida é uma viagem que começa num olhar que se abre e fecha, e segue numa troca, numa comunhão, num compromisso.

A viagem prossegue entre estações que se sucedem num trajeto que segue as posições num mapa mundo que vai crescendo com o tempo.

Mas um dia os olhos fecham-se e ficam fechados. A luz do mundo não mais entra. A viagem interrompe-se nesse mapa mundo testemunhado pelos olhos. 

Há quem diga que a viagem se transfere e passa para um outro mundo que não se vê com esses olhos biológicos.

Entre os mundos não sobra história, nem notícias. Cada um só se vê a si. Só o Deus pode ver todos os mundos, se Ele, ou os mundos existirem!

A vida fecha-se criando uma ausência que se sente, que fere e agride, muitas vezes.

O tempo, o tempo acrescenta tempo. Um tempo necessário para que a vida prossiga e os olhos se abram e vejam o que está no mundo, e transforme as formas em descrições, em palavras significativas e cheias de volume.

Uns olhos testemunham o que os outros olhos fazem. Os últimos desligam o tempo e fecham o mundo, deixam que os primeiros fiquem encharcados de uma ausência penetrante e corrosiva. Os olhos fazem os químicos internos desnortearem a ordem perfeita e ficarem descontrolados numa fazedura caótica, aleatória, encharcante.

Uma humidade tímida, ansiosa, escorregadia, sai dos olhos, dos olhos que ficam, dos olhos que testemunham a partida dos outros olhos companheiros. Os olhos idealmente comungam aos pares numa dança circulante, abundante, cúmplice.

A partida de uns olhos deixa nos outros olhos um vazio, uma serena lágrima que escorrega pelo rosto, uma solidão que como o nevoeiro se vai dissipando com o passar do tempo…



José Guilherme | 28Set2017


O Cheirinho


Uma vela acende-se no interior de uma vasilha de louça, por cima deposita-se a tarte de cheirinho. A chama da vela lambe o interior da louça fazendo derreter a cera do cheirinho que está por cima. 

Um aroma suave, progressivo, volumoso, inebriante, vai-se libertando da cera à medida que esta se derrete.

As pálpebras recolhem-se, a visão diminui e o olfato cresce, intensifica-se e purifica-se. O aroma progressivo enche o sentido do envolvente de uma forma primeiro anónima, depois mais marcante e mesmo dominante.

O corpo contrai-se, um silêncio interrogativo faz atenção. As mãos, os braços, envolvem o corpo inquieto. Uma energia motivada e agitante eleva-se e transborda. 

Um estado de liberdade transpirante eclode pela epiderme elevando a percepção do mundo.

Pelo nariz entra uma fragrância que faz forte o sentido, faz apertados os dedos dobrados, faz rijos os braços envolventes. No peito forma-se uma força expansiva. No pensamento crescem faíscas.

Uma fantasia saltitante, agitada, feliz, sorridente, imagina uma interação de olhares, de sentidos cúmplices.

Um abraço aproxima, envolve, toca, faz adivinhar, dispara, enche, desatina e aquieta. 

Um desejo explode, impõe, adivinha, imagina, súplica.

Um cheirinho faz surgir uma explosão de sentidos que propaga pelo espaço uma imposição inquietante, uma imposição tranquilizadora.

Os olhos fecham-se e abre-se uma consciência expansiva



José Guilherme | 31.10.2017