quarta-feira, 16 de julho de 2003

O sonho

Já tarde recolheu ao leito, manchado pela repentina mágoa. Uma dor, uma tristeza, uma solidão. Aprende-se sofregamente que algumas dores não podem jamais ser partilhadas, são formas de solidão sem contornos palpáveis, misturadas com imagens desfocadas dum sempre passado sem história, impossível de ser concretamente descrita.
Só a imaginada companhia dos Deuses, pode dar consolo a quem na tristeza parece encontrar um peito maternal, uma melancolia reconfortante.
Repousada a cabeça no leito, fechados os olhos, esticado o corpo dorido. Sons sem forma se recolhem entre sombras deslocantes que no espaço se sucedem.
Uma espécie não concretizada de lágrima acompanha-o da vigília ao espaço intemporal.

Já vai longe o início do sono. Aos pés dum anfitiatro colocado até ao infinito, um altar flutuante contém sobre si o Grande Livro. De mãos abertas, em geito de cruz, faz das palavras mensagens com destino ao infinito, até ao último dos ouvintes. Postos à sua frente, todos cobertos por uma túnica arrastada. Nenhum deles com rosto, apenas personagens que estão ali à sua frente perfeitamente alinhados, de cabeças erguidas, uma ordem eterna.
Ao seu lado, o António Vieira, humilde e atencioso, em vestimenta de acólito, executanto eficazmente os gestos do culto, recolhendo atenciosamente as ideias da santa homilia, um dia necessárias para falar aos peixes, já que aos homens pouco adiantará fazê-lo.
Um Homem sempre tem de ter discípulos, o eterno retorno dum estereótipo cultivado pelos génios da solidão, exilados dum tempo que ainda não existe, perdidos nas consequências dum mundo onde abundam os abutres duma inquisição sempre ansiosa das suas carnes mutiladas.

Um homem escreve, um discurso sem ouvintes, um suplício repleto de dores, uma forma deslocada de vingança, resíduos dum escarro, um punhal violentamente desferido em peitos secos, sem arte - viventes por feitio.
Um homem escreve, no monte lança a lenha, no centro o ceptro onde amarrarão as suas ensanguentadas mãos. Pegarão fogo e assarão a sua carne que servirão no grande banquete dessa corja de abutres - raça infectada, náusea apodrecida.

Um som desfere no sonho uma cacetada, aturdido abre os olhos. Ainda amordaçados os olhos reparam que vem de um sonho... um sonho!!...

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