segunda-feira, 28 de julho de 2003

Uma noite de guerra

São onze horas da noite, estou no quarto de banho, juntamente com a maior parte da 2ª companhia de instrução. Esta noite vamos ter instrução nocturna. Estou a queimar uma rolha com um isqueiro, a tentar fazer algum pó preto para camuflar a cara. Estamos uma cambada de imbecis todos maquilhados de negrume. Os meus olhos vão-se perdendo à medida que a minha branquidão se esmorece e se substitui pela escuridão. Coloco um pedaço de pano preto à volta do pescoço, fico quase invisível no susto da noite. O tempo adquiriu uma estranha velocidade neste sítio. Quando entrei neste inferno, dez minutos eram quase nada. Agora, dez minutos podem ser um horror de tempo. Um homem coberto de lama, toma banho, juntamente com cem outros, num espaço que só dá para quarenta, veste farda sacudida e quase limpa, coloca botas tornadas novamente a brilhar, e ainda fica um minuto no pelotão à espera da arrogância desmedida do sarcástico aspirante. Dez minutos tornam-se suficientes para viver um intenso momento de vida!
Vou ao meu armário, uma obra prima da arrumação! Um armário de ferro ferrugento dividido por mim em andares. Em cima os artigos de higiene, o álcool, o algodão, os pensos, as bugigangas, a pequena caixinha com agulhas e fios de cozer mais a tesoura, e a minha navalha suíça cuidadosamente escondida, os fios e os ganchos para prender cabos de montanhismo, não sei para que servirão, mas mais vale estar prevenido. Entre o topo e o fundo, um espaço no qual um tubo serve para pendurar as calças, as camisas, o cinturão, o camuflado. Em baixo em jeitos de improviso, uma caixa com meias, cuecas e lenços, mais abaixo os calções e camisetas de ginástica e, por fim, o segundo par de botas e as sapatilhas.
Verifiquei se tinha a despercebida navalha no bolso das calças, juntamente com o lenço. Nos bolsos das pernas, uma corda, uma rolha, um isqueiro, um pedaço de vela, um trapo, um pedaço de lápis, um rolo de fita cola preta.
Coloquei o M64: o cinturão com os porta carregadores, os suspensórios com os porta granadas, o cantil, a marmita na pequena mochila juntamente com o capacete. O punhal ficou prezo no porta granadas junto ao coração, no outro lado o pequeno estojo de NBQ , e de lado, à direita, a mascara antigás.
Enfiei o quico na cabeça e agarrei a G3. Coloquei fita preta nalguns pedaços mais brilhantes. Desmontei o guarda mão e meti um pedaço de trapo no interior para evitar qualquer ruído propiciado pela folga entre o guarda mão e o tubo. Apertei o tapa chamas com bastante força, não fosse algum miserável pensar subtraí-lo para me acabar de transformar a vida numa miséria impossível. Coloquei?me na bicha para receber o resto do material. Entrei no depósito de armamento da companhia e gritei o meu número e nome. Uma granada de instrução, dez munições de salva, uma ração de combate, uma bússola e uma carta topográfica. A pistola Walter de 9 milímetros, sem munições, o coldre e o fio de prender a pistola ao corpo. Os comandantes de secção por vezes levavam uma Walter! Estavam outra vez a tramar-me!
Nunca havíamos tido uma instrução nocturna a iniciar-se tão tarde, além disso o dia havia sido estranhamente leve - uma má sensação invadia?nos. Retirei o carregador da G3 e executei as operações de segurança: com a G3 virada para cima, puxei o manobrador à rectaguarda, verifiquei que não existia munição na câmara (o contrário seria, no mínimo, alarmante, e aliás, perfeitamente impossível), dei uma pancada no manobrador. Ele saltou para a frente. Pus a alavanca de segurança na posição de tiro a tiro e dei uma gatilhada. Voltei a colocar a arma na posição de segurança. Toda esta operação era absolutamente desnecessária, mas no entanto obsessivamente obrigatória. Coloquei as dez munições de salva no carregador e depois encaixei o carregador na G3. Nunca havia andado com uma granada ao peito, junto ao coração, por cima do punhal. A ração de combate ficou na bolsa da minha perna esquerda. Estava pronto para a Guerra. Coloquei?me no meu pelotão, éramos ainda só doze, os outros estavam atrasados, má notícia, era o suficiente para estragar a noite a toda a gente.
Os camaradas de pelotão foram chegando e colocando-se na sua posição. O aspirante aproximou?se, vinha de camuflado, com uma pistola metralhadora ao ombro, no rosto uma expressão sádica algo divertida! O filho da puta colocou-se à nossa frente com cara de mau - fazia-nos voltas ao estômago. A noite não se mostrava risonha!
Começou para ali a cantar que os seus queridos meninos ainda não se haviam apercebido que estavam na tropa, aquilo já havia deixado de ser desmamanso de cachopos, para ser uma formatura de homens, ainda não se haviam apercebido, talvez a noite os fizesse compreender melhor a situação. Começámos a ficar nervosos, os dentes já se apertavam. O texugo e o doninha fedorenta ainda não estavam no pelotão, eram sempre os mesmos, eternamente atrasados, ia haver festa.
- Dá licença meu aspirante, apresenta-se soldado recruta.
- Sua abestunta, acaba de lixar os seus camaradas. Podem agradecer ao vosso camarada, vão aprender duma vez por todas que aqui ninguém se atrasa.
- Meta-se no seu lugar, já não o posso ver.
Manifestamente a noite já estava estragada, a noite ia ser negra! Era quase meia-noite. Pelos visto aquilo ia durar até de madrugada.

Apareceu o comandante de companhia, o tenente B. Disse-nos que a 1ª companhia de instrução já estava no mato desde há dois dias. Ia-mos fazer uma marcha até à zona do posto de comando. Lá montaríamos vigilância e passaríamos o resto da noite. Já era tempo de entendermos a nossa posição frente à nação, estávamos ali para defender a nossa pátria, afastar os inimigos e sermos homens. O tempo de sermos cachopos havia ficado à entrada do quartel quando lá entramos pela primeira vez. Chegava de andarmos a brincar.
O nosso aspirante virou-se para nós, e deu-nos as ordens de comando, fomos atrás dele em duas filas indianas até à saída de instrução. Começámos a sair do quartel. O passo era acelerado e o peso não se mostrava desprezível, já todos sabíamos que os quilómetros tendiam a pesar nos ombros, a G3 ia sempre aumentando de peso. Eu como era alto ficava sempre para trás o que não me agradava. À medida que íamos ficando cansados a distancia entre mim e o aspirante ia ficando mais comprida, isso não me agradava mesmo nada. Além disso tinha de ir empurrando os mais fracos, não podia ficar ninguém para trás. Passou-se uma longa hora e o passo sempre acelerado tornava-se cada vez mais difícil. Andámos metidos no meio do mato, por caminhos tortos e desnivelados, pedras e buracos, escuridões e negrumes.
Aproximou-se uma estrada, tínhamos de a passar. Os sargentos e os cabos de instrução cortaram o caminho. Começámos em passo acelerado a atravessar. Aproximou-se um carro a buzinar sem aparência de querer parar. O Tenente B. veio a correr com a Walther em punho, aos berros. O homenzito encolheu-se no seu orgulho e lá parou, não teve outro remédio senão esperar.
O caminho tornava-se cada vez mais difícil. A noite estava muito escura e fria. Nem as técnicas de visão nocturna nos podiam aliviar a paisagem ofuscante. Começámos a subir um monte. De súbito, à nossa frente, um penhasco com uma altura a perder de vista. As nossas pernas vacilaram. Vi-me a conter o terror perante a ideia de ter de escalar aquele precipício.
Afinal contornámos por dois caminhos estreitos, muito inclinados, com muitas pedras e terra solta. Era simples, quem estava mais abaixo apanhava com as pedras e o imenso pó que vinham de cima. Todos tinham o mesmo medo. Se alguém caísse, todos cairiam. Chegava-se ao topo com o coração a querer?se escapar pela boca. Quase me era impossível respirar. Cheguei a pensar que era impossível aguentar tal ritmo cardíaco. Na boca sentia uma papa peganhenta. Não podíamos beber água porque no fim iam verificar se os cantis estavam cheios. E, para beber um golo mais valia aguentar aquela asfixia. Continuámos a progredir. O aspirante mandou parar. Em voz muito baixa disse-nos que nos começávamos a aproximar de território inimigo. A 1ª companhia era o inimigo! A partir dali não podíamos fazer o mínimo ruído. Continuámos mais devagar, com as cautelas possíveis e obrigatórias. Aqueles cuidados eram uma benção para a maioria de nós. Alguns camaradas, porque não aguentavam grandes marchas, utilizavam pensos higiénicos nos calcanhares das botas. Sempre achei que isso era um disparate; assim não habituavam os pés. Se calhasse atravessar-mos um curso de água mais intenso poderia entrar água nas botas; havia de ser bonito fazer uma marcha com aqueles pézinhos delicados empastados em água. Sempre achei que enfrentar a dureza sem mascaras era mais sensato. Começámos a descer por meio de pinheiros. Uns atrás dos outros. Não era ideia saudável alguém perder-se do grupo. Quando chegámos ao fim, começámos a caminhar no interior duma floresta cerrada, cada vez mais lentamente. Comecei a aperceber-me que a tortura tomava novos contornos. Aquele descanso tinha um preço. Começámos a sentir que a noite estava muito fria. A fome começava igualmente a importunar?nos.
Após uma meia hora de lenta progressão, chegámos ao posto de comando, onde ficaríamos. O aspirante dividiu-nos e indicou os lugares onde havíamos de montar os panos de tenda. Cada três homens fazia uma tenda juntando o seus panos. Lá dentro cabiam esses três homens mais o equipamento de combate, as pernas ficavam cá fora! A seguir dividíamos os turnos de vigia e demarcávamos os lugares onde seriam colocados os postos. Fazer uma vigia naquela negridão com a fome, o frio e o sono por companheiros não era coisa fácil. Sentei-me no chão, abri a ração de combate. Não era tarefa pacífica dividir aquelas conservas pelas refeições, especialmente porque nunca sabíamos quando é que teríamos nova ração ou uma refeição cozinhada. Tinha um pacote de le

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