segunda-feira, 14 de julho de 2003

Eu já fui pequenino!

Um dia eu fui pequeno e brincava na rua, como todas as crianças.

Saltitava pelo quintal da minha casa, rebolava pela relva, corria incansavelmente, dava tiros com a minha arma feita de um tubo que havia sido um suporte duma bacia de quarto de banho. Uma arma era tudo o que eu queria, e aquela era mesmo boa. Não me recordo facilmente das outras crianças, mas claro que as havia, uma criança sozinha não é saudável. Os outros são sempre a nossa grande oportunidade de crescer e de repartir a nossa grande vitalidade.
Um dia fui para a escola, acho que era muito pequenino, não me lembro se gostei, mas devo ter gostado, tantos eram os ouvintes para as minhas fascinantes histórias.
Se gostei, devo ter deixado de gostar, ninguém aplaude as histórias fantásticas duma criança. Eu era gozado e empurrado. Apenas um grupo muito reduzido de meninos ficou meu amigo. Fazíamos parte da mesma fila de carteiras - era a fila dos meninos burros. Eu não era burro, mas eles não sabiam. Nunca me importei de lá estar, era a única fila onde tinha amigos.
Um dia em frente da escola o homem mau disse muitas coisas de que não me lembro. Nós estávamos formados como fazem os soldados, erguemos a mão direita e cantámos uma canção. Um dos meus amigos não levantou o braço e não cantou. Um dos meninos de outra fila que não a nossa boa fila dos burros, fez queixa e o homem mau bateu?lhe. Ele foi para o médico cheio de dores e com feridas - chorou muito e eu tive muita pena dele. Nesse dia compreendi que não estava sozinho, mas que devia ter cuidado. Fiquei com medo e deixei de contar tantas histórias. O meu amigo tinha a pele escura. Passei a brincar no mato sempre que me conseguia escapar. Um dia troquei uma navalha do meu pai por uma fisga. Não podia estar mais contente: agora, além de dar tiros, fazia barulho e caíam coisas quando os tiros lá chegavam.
Certo dia os meus pais não me deixaram ir para a escola. Fizeram um grande caso e estavam muito esquisitos. Nessa noite não dormi. Foi porreiro. Fomos todos para casa dum senhor. Passámos a noite a brincar, os nossos pais não nos chatearam. As mães estavam enfiadas na cozinha e os pais andavam lá fora. Eu descobri em cima duma mesinha uma pistola pequena que deitava lume quando se disparava, era uma chama muito bonita que ficava acesa até deixar de carregar o gatilho.
A noite foi muito luminosa e barulhenta, parecia que tinham ido todos à caça.
Ouviu-se um barulho muito alto e o mato à frente da casa começou todo a arder, foi tão bonito! De manhã veio um camião grande com muitos soldados a sério, tinham uma roupas porreiras e muitas caixinhas e uma pistola. Andavam sempre com uma espingarda e tinham um capacete de ferro.
A partir desse dia tudo foi diferente. Mais tarde mudámos de casa e toda a gente ficou cheia de medo. Às vezes ouviam-se tiros. Nas estradas havia muitos soldados. Um dia andava com o meu pai e numa barreira onde estavam uns soldados muito barulhentos passou um carro velho e não parou. Os soldados deram muitos tiros; uma porta do carro abriu-se e caiu um homem velho a deitar sangue. O meu pai tapou-me os olhos e saiu dali. Mas eu ainda vi. Ele pensa que não.
Todos os anos faziam uma grande feira na cidade. Haviam muitos pavilhões com brinquedos e máquinas e quadros e desenhos e comidas e luzes. Lembro-me dumas fontes muito grandes onde havia jactos de água que subiam muito alto e tinham muitas luzes que saiam da água. Lembro?me muito dum pavilhão onde estavam muitas fotografias e coisas escritas nas paredes. Quando fecho os olhos vejo uma fotografia onde havia ao longe uma casa sem janelas e portas, com as paredes todas furadas, a estrada toda cheia de lixo e na borda uma espécie de rio pequenino onde boiavam muitas coisas esquisitas; lembro?me dos cabelos cumpridos de mulher e dum braço que saia da água.
Deixei de ir à escola porque os meus pais tinham medo que eu ficasse aleijado.
Um dia viemos embora para outro país onde não havia tiros mas estava sempre a chover.

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