segunda-feira, 14 de julho de 2003

Os Habitantes dos Corpos e o Cavaleiro Andante

Naqueles saudosos tempos vivia lá para os lados da montanha um enigmático, saudável e austero cavaleiro. Possuidor dum magnífico cavalo de claros e firmes tons, sempre ligeiro na ponta robusta dos sólidos cascos.
As mais das vezes, passava recolhido na sua quinta, enfiada na reverdescente floresta, banhada numa das faces pela serenidade duma vasta lagoa, lambida noutra pela brisa marinha dum farto oceano ainda escasso de marinheiros.
Enfiado nas suas muitas imaginações, cavaleiro pródigo, todo cheio de histórias das imensas viagens, sempre longas e de saborosas paisagens, assim vivia, fazendo do viver um imenso laboratório onde testava a arte da vida, procurando tirar conclusões e engendrando outras formas de estar, sempre insaciavelmente, em busca duma mais substancial maneira de viver.
Nem sempre satisfeito com as suas vastas propriedades, via-se envolvido em perigosas conquistas ao mundo externo, progredindo cautelosamente pelos vastos territórios que o cercavam.
Assim ia, em busca dos alimentos, em busca dos tecidos, em busca dos livros. Guiado por uma espécie de carta onde ia fazendo acrescentos, uma bússola por si construída, e um coração cheio do orgulho de conquistador.

Progredindo pelo selvagem território lá ia, sempre ligeiro, sempre maravilhado pela fresca verdura. Aqui e ali se deparava com um nativo que logo, desconfiado, se resguardava atrás de algum arbusto, só de lá saindo passada a distância. Ele sempre sorridente, de suaves palavras, diplomata convicto, nada mais recebia do que uma redobrada desconfiança; a simpatia de estranho inspirava sempre cuidados. Naquelas terras a boa palavra impunha sempre redobrados cuidados, era muitas vezes sinónimo de má intensão. Simpatias de estranho, maus intuitos. Enfim, ao explorador sempre se apresentam agrestes as recepções, fado seu, imagem suscitadora de cuidadas considerações.

Eram longos os territórios, demorada a viagem, chegada finalmente ao seu destino.

Sempre pareciam inoportunas as raras visitas daquele estranho visitante, que a todos, pela sua impressionante serenidade, assustava.

Logo se acelerava o ritmo pasmacento daquela pequena cidade; de boca em boca se alongava a notícia, o cavaleiro de rosto sorridente havia uma vez mais chegado. Queira Deus que ao merceeiro não faltem as energias, que as suas astúcias não se tornem demora. Logo se vá para longe e não mais volte.
Os mais jovens vão, sorrateiramente, imaginando naquele ocasional visitante um mensageiro da boa nova. Valha o Senhor Deus! Tão indefesas são as criancinhas; ficam preocupados os pais, tão ajeitado era o estranho senhor a conversar com os seus delicados meninos; logo imaginavam a perversão das tenras ideias pelas ideias moribundas. Logo se temia a subtil revolta contra os costumes tão trabalhosamente mantidos entre gerações, mau grado as modernices que tantos custos lhe infligiam.
O cavaleiro lá se instalava na mercearia, encomendando um rol de mantimentos, fartos quanto bastasse para uma viagem ao outro mundo. Esquecia?se o merceeiro dos temores, e lá se enchia duma arregalada felicidade tão impudentemente espelhada no rosto.
Acaloradamente empreendia um discurso febril aconselhando as modernas conservas que vinham lá da capital, a frescura dos legumes, a viveza dos peixes, o tenro bife, a aromática pimenta. Saltavam na caixa as moedas reluzentes que tão bem faziam à saúde do mercador, ficando tão farto de alegrias.

Mandou que a tudo acondicionasse devidamente, por forma a não sofrer as agruras da viagem.

Como era hábito seu, lá partiu em exploração à única casa de livros que existia em redor. Eram saudáveis os volumes expostos, como que a convidar à Boa Educação; como convém aos Bons Costumes, Nada de livros difíceis, perturbantes dos tenros espíritos dos queridos filhos da cidade. Todos os bons autores, devidamente sancionados pelas legais entidades, eleitas pelo sufrágio universal, lá estavam convidando à saudável leitura.
O livreiro, que havia descoberto na intrigante figura, um cliente, como não havia no mundo outro igual, criara na cave uma escondida biblioteca, abastecida de alguns, poucos, volumes que, a serem descobertos pelas autoridades, lhe custariam seguramente fartos tormentos. Livros lá depositados eram negócio fechado, a bom dinheiro, valiam por muitos dos permitidos pela legal autoridade. A todos o cavaleiro de olhos cintilantes levava.
Parecia ao cavaleiro que a dita Boa Educação, não mais era do que uma fronteira que interditava as Ideias Abertas aos jovens alunos. Ideias julgadas por todos como um despropósito nada saudável, que incutia vícios, e ritmos perigosos a uma sociedade, propiciando atritos e contestações.
Esses dias eram motivo de redobrada felicidade para o livreiro; a sua sempre tão pouco visitada loja, enchia-se de crianças, que buscavam o contador de histórias. De entre eles se erguia um rol de novos leitores, tão intensamente desejados.

Vendo-se, assim, tão cercado de ouvintes, lá começava a contar uma história toda cheia de peripécias. Com grandes gestos desenhava no ar a forma dos impressionantes cenários; a sua voz tomava o timbre de cada personagem, o volume acutilava os desfechos, tonificava as palavritas, orgulhava as palavras, acerbava as palavronas. Ia assim dizendo que nem tudo os livros reflectiam, especialmente aqueles que lhes eram facultados. Muitas vezes eram alegorias que convidavam à meditação.
Os educadores, mortificados, viam com grandes apreensões aquele apego dos educandos, que tanto lhes escapavam perante os saudáveis conselhos, e tão facilmente se chegavam ao inquietante personagem. Secretamente sofriam atrozes invejas pelo poder de atracção de tão fácil orador - só a custos e reprimendas ganhavam a atenção dos pequenos ouvintes.

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