segunda-feira, 28 de julho de 2003

Uma noite de guerra

São onze horas da noite, estou no quarto de banho, juntamente com a maior parte da 2ª companhia de instrução. Esta noite vamos ter instrução nocturna. Estou a queimar uma rolha com um isqueiro, a tentar fazer algum pó preto para camuflar a cara. Estamos uma cambada de imbecis todos maquilhados de negrume. Os meus olhos vão-se perdendo à medida que a minha branquidão se esmorece e se substitui pela escuridão. Coloco um pedaço de pano preto à volta do pescoço, fico quase invisível no susto da noite. O tempo adquiriu uma estranha velocidade neste sítio. Quando entrei neste inferno, dez minutos eram quase nada. Agora, dez minutos podem ser um horror de tempo. Um homem coberto de lama, toma banho, juntamente com cem outros, num espaço que só dá para quarenta, veste farda sacudida e quase limpa, coloca botas tornadas novamente a brilhar, e ainda fica um minuto no pelotão à espera da arrogância desmedida do sarcástico aspirante. Dez minutos tornam-se suficientes para viver um intenso momento de vida!
Vou ao meu armário, uma obra prima da arrumação! Um armário de ferro ferrugento dividido por mim em andares. Em cima os artigos de higiene, o álcool, o algodão, os pensos, as bugigangas, a pequena caixinha com agulhas e fios de cozer mais a tesoura, e a minha navalha suíça cuidadosamente escondida, os fios e os ganchos para prender cabos de montanhismo, não sei para que servirão, mas mais vale estar prevenido. Entre o topo e o fundo, um espaço no qual um tubo serve para pendurar as calças, as camisas, o cinturão, o camuflado. Em baixo em jeitos de improviso, uma caixa com meias, cuecas e lenços, mais abaixo os calções e camisetas de ginástica e, por fim, o segundo par de botas e as sapatilhas.
Verifiquei se tinha a despercebida navalha no bolso das calças, juntamente com o lenço. Nos bolsos das pernas, uma corda, uma rolha, um isqueiro, um pedaço de vela, um trapo, um pedaço de lápis, um rolo de fita cola preta.
Coloquei o M64: o cinturão com os porta carregadores, os suspensórios com os porta granadas, o cantil, a marmita na pequena mochila juntamente com o capacete. O punhal ficou prezo no porta granadas junto ao coração, no outro lado o pequeno estojo de NBQ , e de lado, à direita, a mascara antigás.
Enfiei o quico na cabeça e agarrei a G3. Coloquei fita preta nalguns pedaços mais brilhantes. Desmontei o guarda mão e meti um pedaço de trapo no interior para evitar qualquer ruído propiciado pela folga entre o guarda mão e o tubo. Apertei o tapa chamas com bastante força, não fosse algum miserável pensar subtraí-lo para me acabar de transformar a vida numa miséria impossível. Coloquei?me na bicha para receber o resto do material. Entrei no depósito de armamento da companhia e gritei o meu número e nome. Uma granada de instrução, dez munições de salva, uma ração de combate, uma bússola e uma carta topográfica. A pistola Walter de 9 milímetros, sem munições, o coldre e o fio de prender a pistola ao corpo. Os comandantes de secção por vezes levavam uma Walter! Estavam outra vez a tramar-me!
Nunca havíamos tido uma instrução nocturna a iniciar-se tão tarde, além disso o dia havia sido estranhamente leve - uma má sensação invadia?nos. Retirei o carregador da G3 e executei as operações de segurança: com a G3 virada para cima, puxei o manobrador à rectaguarda, verifiquei que não existia munição na câmara (o contrário seria, no mínimo, alarmante, e aliás, perfeitamente impossível), dei uma pancada no manobrador. Ele saltou para a frente. Pus a alavanca de segurança na posição de tiro a tiro e dei uma gatilhada. Voltei a colocar a arma na posição de segurança. Toda esta operação era absolutamente desnecessária, mas no entanto obsessivamente obrigatória. Coloquei as dez munições de salva no carregador e depois encaixei o carregador na G3. Nunca havia andado com uma granada ao peito, junto ao coração, por cima do punhal. A ração de combate ficou na bolsa da minha perna esquerda. Estava pronto para a Guerra. Coloquei?me no meu pelotão, éramos ainda só doze, os outros estavam atrasados, má notícia, era o suficiente para estragar a noite a toda a gente.
Os camaradas de pelotão foram chegando e colocando-se na sua posição. O aspirante aproximou?se, vinha de camuflado, com uma pistola metralhadora ao ombro, no rosto uma expressão sádica algo divertida! O filho da puta colocou-se à nossa frente com cara de mau - fazia-nos voltas ao estômago. A noite não se mostrava risonha!
Começou para ali a cantar que os seus queridos meninos ainda não se haviam apercebido que estavam na tropa, aquilo já havia deixado de ser desmamanso de cachopos, para ser uma formatura de homens, ainda não se haviam apercebido, talvez a noite os fizesse compreender melhor a situação. Começámos a ficar nervosos, os dentes já se apertavam. O texugo e o doninha fedorenta ainda não estavam no pelotão, eram sempre os mesmos, eternamente atrasados, ia haver festa.
- Dá licença meu aspirante, apresenta-se soldado recruta.
- Sua abestunta, acaba de lixar os seus camaradas. Podem agradecer ao vosso camarada, vão aprender duma vez por todas que aqui ninguém se atrasa.
- Meta-se no seu lugar, já não o posso ver.
Manifestamente a noite já estava estragada, a noite ia ser negra! Era quase meia-noite. Pelos visto aquilo ia durar até de madrugada.

Apareceu o comandante de companhia, o tenente B. Disse-nos que a 1ª companhia de instrução já estava no mato desde há dois dias. Ia-mos fazer uma marcha até à zona do posto de comando. Lá montaríamos vigilância e passaríamos o resto da noite. Já era tempo de entendermos a nossa posição frente à nação, estávamos ali para defender a nossa pátria, afastar os inimigos e sermos homens. O tempo de sermos cachopos havia ficado à entrada do quartel quando lá entramos pela primeira vez. Chegava de andarmos a brincar.
O nosso aspirante virou-se para nós, e deu-nos as ordens de comando, fomos atrás dele em duas filas indianas até à saída de instrução. Começámos a sair do quartel. O passo era acelerado e o peso não se mostrava desprezível, já todos sabíamos que os quilómetros tendiam a pesar nos ombros, a G3 ia sempre aumentando de peso. Eu como era alto ficava sempre para trás o que não me agradava. À medida que íamos ficando cansados a distancia entre mim e o aspirante ia ficando mais comprida, isso não me agradava mesmo nada. Além disso tinha de ir empurrando os mais fracos, não podia ficar ninguém para trás. Passou-se uma longa hora e o passo sempre acelerado tornava-se cada vez mais difícil. Andámos metidos no meio do mato, por caminhos tortos e desnivelados, pedras e buracos, escuridões e negrumes.
Aproximou-se uma estrada, tínhamos de a passar. Os sargentos e os cabos de instrução cortaram o caminho. Começámos em passo acelerado a atravessar. Aproximou-se um carro a buzinar sem aparência de querer parar. O Tenente B. veio a correr com a Walther em punho, aos berros. O homenzito encolheu-se no seu orgulho e lá parou, não teve outro remédio senão esperar.
O caminho tornava-se cada vez mais difícil. A noite estava muito escura e fria. Nem as técnicas de visão nocturna nos podiam aliviar a paisagem ofuscante. Começámos a subir um monte. De súbito, à nossa frente, um penhasco com uma altura a perder de vista. As nossas pernas vacilaram. Vi-me a conter o terror perante a ideia de ter de escalar aquele precipício.
Afinal contornámos por dois caminhos estreitos, muito inclinados, com muitas pedras e terra solta. Era simples, quem estava mais abaixo apanhava com as pedras e o imenso pó que vinham de cima. Todos tinham o mesmo medo. Se alguém caísse, todos cairiam. Chegava-se ao topo com o coração a querer?se escapar pela boca. Quase me era impossível respirar. Cheguei a pensar que era impossível aguentar tal ritmo cardíaco. Na boca sentia uma papa peganhenta. Não podíamos beber água porque no fim iam verificar se os cantis estavam cheios. E, para beber um golo mais valia aguentar aquela asfixia. Continuámos a progredir. O aspirante mandou parar. Em voz muito baixa disse-nos que nos começávamos a aproximar de território inimigo. A 1ª companhia era o inimigo! A partir dali não podíamos fazer o mínimo ruído. Continuámos mais devagar, com as cautelas possíveis e obrigatórias. Aqueles cuidados eram uma benção para a maioria de nós. Alguns camaradas, porque não aguentavam grandes marchas, utilizavam pensos higiénicos nos calcanhares das botas. Sempre achei que isso era um disparate; assim não habituavam os pés. Se calhasse atravessar-mos um curso de água mais intenso poderia entrar água nas botas; havia de ser bonito fazer uma marcha com aqueles pézinhos delicados empastados em água. Sempre achei que enfrentar a dureza sem mascaras era mais sensato. Começámos a descer por meio de pinheiros. Uns atrás dos outros. Não era ideia saudável alguém perder-se do grupo. Quando chegámos ao fim, começámos a caminhar no interior duma floresta cerrada, cada vez mais lentamente. Comecei a aperceber-me que a tortura tomava novos contornos. Aquele descanso tinha um preço. Começámos a sentir que a noite estava muito fria. A fome começava igualmente a importunar?nos.
Após uma meia hora de lenta progressão, chegámos ao posto de comando, onde ficaríamos. O aspirante dividiu-nos e indicou os lugares onde havíamos de montar os panos de tenda. Cada três homens fazia uma tenda juntando o seus panos. Lá dentro cabiam esses três homens mais o equipamento de combate, as pernas ficavam cá fora! A seguir dividíamos os turnos de vigia e demarcávamos os lugares onde seriam colocados os postos. Fazer uma vigia naquela negridão com a fome, o frio e o sono por companheiros não era coisa fácil. Sentei-me no chão, abri a ração de combate. Não era tarefa pacífica dividir aquelas conservas pelas refeições, especialmente porque nunca sabíamos quando é que teríamos nova ração ou uma refeição cozinhada. Tinha um pacote de le

quarta-feira, 16 de julho de 2003

De mãos para o Alto

Abriu as mãos, expôs os braços ao alto, engoliu em seco. Paulatinamente amaciou os esperançados devotos à sua frente prostrados. Perdeu o olhar pela porta entreaberta do templo. Lá fora, oh lá fora era o Mundo!...
Desceu a cabeça e pousou os olhos na santa escritura, palavras graciosas seguiam-se em fila indiana.
Uma bonomia, uma terna macieza lhe percorreu a face.
Com uma firmeza inabalável, começou a recitar o santíssimo texto.
À sua frente também havia quem escutasse a beleza do sentido, entre outros atarefados a bater no peito, a tirar as medidas da túnica, a lamentar a vela ainda agora apagada, as flores já um pouco murchas.
Já houve quem nos peixes tenha encontrado melhores ouvintes, ali poucos havia!

Com uma forte voz, lenta, pausada e concisa, foi apregoando aquela herança que havia ficado escrita. Eram palavras significativas, enfeitadas e entrelaçadas que diziam o que não diziam, sempre mais ricas do que era acessível a alguém pouco atento.

Ia recitando aquelas palavras quase sem olhar o papel, tantas vezes já as lera. Já tantos as haviam escutado, bem menos capazes de as resumir. Os seus olhos, esperançados, lançavam feixes de luz às crianças que no banco da frente esperavam o amém final. Era lá fora que estavam as suas almas, não ali, naquela casa sombria que era chamada a casa de Deus. Se me fosse dada a permissão de ter uma casa, certamente que seria mais acolhedora, menos fria, menos gigante, mais envolvente. O Deus devia de ser triste, com uma casa daquelas onde tantas lamentações, e tão poucas alegrias se depositavam. Pai com um filho pregado numa cruz, ali ao alcance de todos - todos deviam saber que aquele homem que ali continuava pregado, com as mãos rasgadas e ensanguentadas, quase nu ao sabor dos ares sempre frios, aquele homem que ali sempre permanecia, havia capitulado em favor dos seus pecados, tinha no corpo ali depauperado o peso dum mundo cruel.

Lá fora, por detrás daquela réstia de luz, havia um mundo mais claro, mais luminoso, mais aconchegante. O Deus quando lá ia fora - não era possível que estivesse sempre ali, naquela angustiante enchente de devotos, sempre a trocar ofertas e sacrifícios por favores - devia de ficar mais feliz, banhado pela justeza daqueles raios de sol, que por ele haviam sido criados. Deus era o criador do mundo e em troca os homens haviam sobreposto aqueles pedaços grandes de pedra amontoada, haviam deixado poucos buracos por onde pudesse a luz entrar. E era aquela a casa do Deus.

O Sangue e o Corpo de Cristo, em sacrifício de nós, pregado na cruz, morto e ressuscitado, feito à semelhança do Pai, nosso sempre irmão, de todos irmão, sem que todos se encontrem como irmãos.

Pela sua fé fazem os homens aqueles templos de pedra fria, fazem guerras - até lhes chamam guerras santas! Trucidam barbaramente outros homens, mas nunca os lembram, antes os feitos históricos, as grandes conquistas. Os que pereceram foram um mal menor, do seu sangue nasceu um lugar na história - Deus dê paz às suas almas.

E vem o Amém final. Um sopro e uma comedida felicidade acolhe os fiéis. Vêm em magotes cá para fora, aliviados dos seus pecados, prontos para novos e muitos. Ainda às portas do templo e, já o cochiço dá ares de mestria.
- A filha da Sra Antónia está bonita, aquele vestidito fica-lhe que nem a um anjo (que Deus a proteja e não deixe que se torne anjinha e cochicheira tais mães protectoras).
- Olhem, olhem, olhem para aquilo, é o filho do Sr. Manel das vinhas, aquilo é que está grande, já se amanda às raparigas, é tal filho tal pai.
- E viram a malvada da Ti Rosália, ainda ontem foi uma pouca vergonha com a cunhada, aquilo precisava era duma cachaporra pela cabeça abaixo - puta desavergonhada.

Tirada a túnica, os paramentos cuidadosamente guardados, um olhar sério e interrogativo passou minuciosamente pelos cantos daquela limpa e asseada sacristia. Um adeus quase idolatrado lhe deu o sacristão, homem devoto, fervoroso criado da casa de Deus.

Retirando-se da sacristia foi-se deslocando para a saída. Ajoelhou-se delicadamente perante o Senhor e ficou por momentos pensativo: óh Pai, dá a este teu filho a Tua apaziguante benção. Não deixeis nunca que os meus pensamentos se afastem do caminho eterno, dos actos não preciseis de Vos preocupardes, a minha pudica e humilde presença jamais será maculada.

Dai-me, Vos peço humildemente, uma santa graça, uma habilidade nas palavras, uma inspiração nas homilias. Sinto que não desperto a atenção dos meus destinatários, não sei que mais fazer, que mais ler, que mais aprender. Ocorre-me que seja a leitura, ela mesma, a culpada! Bem sabes que escritos tenho disfarçadamente espreitado! Sinto uma curiosidade que já se vem sentindo insatisfeita. Dai-me a inspiração e afastai-me das trevas, este filho vos suplica. Talvez seja melhor deixar?me de leituras, e não alimentar esta obsessiva busca duma forma algo parecida com uma intuição, uma premunição, enfim, acho que me procuro desculpar, a verdade é que sinto muitas dúvidas na minha capacidade interventiva, sinto-me incapaz de construir uma alternativa à mediocridade que todos os dias vejo à minha frente. Tende paciência comigo, deve de ser alguma fase!
Todos os homens passam fases na sua vida. Começa tudo uma noite. O nosso pai abalroa nossa mãe. Juntam-se as sementes. Passam os dias, e o fruto vai-se transmutando e multiplicando. Depois não vem aquele dia, o dia vermelho. Em vez dele vêm más disposições e enjoos. O nosso pai festeja, aí, aproximando-se, vem o varão, o herdeiro! A mamã vai primeiramente à farmácia com uma amiga, trazem de lá uma espécie de tubo com um líquido e com umas instruções! O líquido muda de cor, fica confirmada a boa nova. Depois vai ao senhor doutor. Faz umas análises e o douto lá confirma aquela coisa da cor. Bem, os dias vão passando e aquela coisa que sou eu, vai ficando grande. A barriga da mãe começa a inchar, e os amigos dizem que ela está de balão. A mamã começa a comer muito e a ficar com umas mamitas muito grandes. Um dia começa aos gritos e o mundo torna-se apertado. Bem o pai vai a correr com ela para o hospital. Depois de ser quase esmagado, o mundo torna-se repenti-namente grande. O raio do douto puxa-me a cabeça, parece parvo, parece a cabeça ir-se separar do corpo! Bem, mal salto cá para fora, o braço direito do douto dá?me uma palmada no rabo. Eu fico lixado, começo aos berros e o gajo ainda por cima fica todo contente! Depois, depois vem o melhor, bem nem em tudo. O que mais gosto é das mamitas da mamã, mas não gosto nada daqueles cocos que me assam o rabo todo. Depois começam a dar-me umas papas que são uma porcaria. Eu começo a ficar grande e um dia vou para uma casa onde estão muitos tipos pequeninos como eu. Óh pá que susto, olha que no terceiro dia vejo uma menina nua, fico afrontadíssimo, ela tem uma ferida! Começo a aprender a falar, a escrever e a ler. Um dia começam a ensinar-me matemática, e eu fico a saber que um mais um é um par, assim como quando fico maior e conheço a Helena. Um dia acho que ela é jeitosa, e começo a ficar com certas manias, pergunto-lhe se ela quer ser minha namorada. Olha é fixe. Brincamos muitas vezes e estudamos juntos. Um dia ao chegar a casa dela fico muito magoado: ela está a tomar banho com o irmão. Ele está para ali a ver as mamitas e a ferida dela. E eu nunca mais consigo brincar com ela. Passo a brincar sozinho, mas nunca mais me esqueço daquela cena. Ela é muito bonita, gosto muito do cabelo dela! Depois mudo de escola e nunca mais consigo brincar com as meninas, torno-me um triste sozinho. Passo a prestar atenção a outras coisas, aprendo muito e começo a praticar desportos. É bom nadar, eu gosto da piscina. É lá que conheço a Joana. Ela é muito bonita de fato de banho. Óh pá começo a sonhar com ela. Um dia convida-me para os anos dela, e eu levo?lhe um boneco e um livro. Ela dá-me um beijo na cara e eu nunca mais a esqueço. Um dia vamos ao cinema só os dois. Ficamos embaraçados por vermos os actores aos beijinhos. Eu depois duma grande luta consigo agarrar?lhe a mão. Quando vou com ela até casa ela dá?me um beijo nos lábios! Nessa noite não durmo, fico acordado a sentir os lábios dela. Depois fico maior, o meu pai vai trabalhar para outra cidade e eu tenho de ir também. é uma crise! Mais tarde começo a trabalhar, e um dia conheço a minha mulher. Um dia vamos dar um passeio. Eu encosto o carro na praia. Damos um beijo que nunca mais acaba e eu, atrevido, coloco a mão na mamita dela e ela não a tira. Hoje, já passados muitos anos, tenho um miúdo muito traquinas que tal como eu é levado do raio, nunca está parado, parece ter bicho carpinteiro tal como o pai.
Tendo reparado como a vida nos escapa entre os dedos, e como a visão dela está completamente errada, como somos iludidos pelas circunstancias, como nos sentimos satisfeitos quando tudo está bem, e como nos sentimos esmagados quando tudo está mal. Tento incutir no meu filho uma capacidade de filtrar a realidade, de buscar nas coisas a sua origem, de vasculhar nos sótãos. As traduções conteem sempre erros e, muitas vezes deixa-se perder o sentido intimo dos originais. A cultura e a história está repleta de traduções. Não reparam nisso os homens, e muitas injustiças se cometem. Formam-se heróis onde heróis não existem, engendram-se criminosos nos mais empenhados concidadãos.
Pelo mundo ando a vaguear, sempre tenho todos como irmãos, tal como me ensinaram na catequese. Mas a catequese tendo um sentido doutrinário, aborda sempre os assuntos numa perspectiva de Adão e Eva, de bem e de mal, de certo e errado. Não existem desculpas, existem pecados. Não existe boa intenção, existe malícia. Não existe originalidade, existe repetição. Para um homem com bicho carpinteiro, acaba a doutrina por tornar-se um tédio. Uma falta de imaginação impera nas religiões, uma forte resistência à inovação, uma negação do neologismo.
Assim, ao olhar os circundantes, a sua escassa interrogação, a forma passiva como aceitam a injustiça de não serem eles mesmos, os imensos equívocos em que persistem, os estereótipos e as ideias fixas, a insensatez e a mediocridade de que se encharcam, fica-me a ideia de que não sabem olhar para dentro de si, não sabem edificar-se, assumir-se e identificar-se com os objectivos que deliniam. Provavelmente de objectivos apenas se apercebem dos sociais, materiais, políticos e religiosos. Um dia os homens desculpam?se dizendo que nada podem fazer, um homem pouco ou nada significa. Não repararam certamente que grandes feitos humanos são iniciados, ou executados por um homem apenas. Um homem pode fazer muita diferença, se ele assim quiser.
Claro que existe um preço a pagar. Antes de se ocupar com os outros cada um deve encontrar-se, juntar as suas forças e construir o seu edifício. A diluição na multidão significa a ausência dos grandes momentos que marcam destaque na vida de cada um.
Os verdadeiros religiosos, aqueles que praticam com os punhos cerrados, e orientam a sua vida pelo sentido em que acreditam, sejam cristãos ou budistas, sabem que é neles que se inicia o sentido, sabem que não existem desculpas, ou são ou não são, o mundo não se compadece com a fraqueza, na luta pelo sentido sobrevivem os mais fortes, os mais persistentes, os outros, diluem-se no colectivo, fundem?se na massa do mundo, no ruído social.
O homem mistura-se no sentido do colectivo, embrenha-se nas ciências, segue empenhadamente a disciplina e a vocação da evolução, ganha habilidades nas técnicas e constrói obsessivamente a ordem global. Por vezes escorrega e suja-se com os resíduos dos bastidores. Olha assustado, umas vezes foge e enxota a sujidade, outras, em jeitos de curiosidade, procura descobrir as peças do labirinto. Entra nos bastidores e percorre fascinado os infindáveis corredores. Dá-lhe a fome, procura o regresso. Uma angústia crescente vai-se apoderando: o regresso não parece estar em sitio algum. O frio e a escuridão da noite envolve-o, encolhe-se no seu interior e olha assustado. Adormece no soalho duro e frio. Um pesadelo emerge no sono. Primeiro conspurcado por imenso terror dá em correr em direcções aleatórias. De todo o lado ocorrem fantasmas e monstros com formas estranhas. Depois enche-se de fúrias e enfrenta todos os bichos que se lhe deparam, tudo parte e desfaz. Imensos berros e gritos desfere em tudo o que lhe tolhe o caminho. Dá-se assim uma imensa desconstrução, os alicerces inculcados pela educação ficam rachados, grandes fendas se tornam visíveis. O passado já não é mais um caminho em direcção ao futuro. Quando finalmente acorda, e percorre uma vez mais os labirintos, mais sereno, mais atencioso, acaba por descortinar a saída dos bastidores, o fim dos corredores intermináveis. Os jeitos de interpretação, a forma de ver, não é jamais a mesma. O mundo toma outros contornos. Está mais calmo, menos apressado, mas também mais afastado do colectivo. Torna-se alheio aos interesses estabelecidos, não se empenha nas tarefas do grupo. O seu caminho torna-se distinto, o mundo espera-o. Não mais se dispersa em objectivos alheios - a meditação, a integração e a busca do sentido último das coisas parece tornar-se a nova tarefa.

Um gajo bera

Demorados e longínquos tempos, tempos de brandura, de ingenuidade, de encaixe - Eu era um tipo Bom! Agora já não sou um tipo bom, agora sou um gajo Mau! Completamente bera, irascível, prepotente.
Naqueles tempos acreditava na sinceridade, na amizade, nos belos e sensíveis gestos. Agora sou um eremita, longínquo, a milhas de qualquer amabilidade hipócrita.
Gostava de ser simpático, era todo cheio de amabilidades - coisa lamentável! Agora sou frio, um cara de pau, um guerreiro incontornável, em suma, finalmente sou um sacana dum gajo mesmo mau!

Vou dar cabo dos tipos, raios os partam. Não se pode ser bom e cheio de amor. Vomitam anátemas pegajosos, repelentes e viscosas substâncias mal cheirosas, cheias de pelos, de sangues, de merdas nauseabundas.

Não sei bem como o faça. Enche-se-me o rosto dum sorriso sádico. Antigamente eu era tão somente um lamentável masoquista, sempre disposto a sofrer as arrogâncias e as más educações! Venham os novos tempos e o homem chegará à Lua. Oh Júlio, quão distantes os teus contos visionários. Oh Verne, pudesse eu ter um poucochito da tua mestria e já na Lua estaria, distante destes cabrões!

Já a imagem sempre tensa da morte não me chega como retaliação - fácil coisa, algo de mais apetitoso se impõe; um trote de tiros de caçadeira nas pernas desses coisos. Aqueles deliciosos buracos a escorrerem debandas de sangue envenenado. Aqueles atrozes gritos. Oh Deus, que me dão escrúpulos e me arrependo de ser Mau.

Primeiro será necessário fazer uma minuciosa intervenção cirúrgica - extaiam-me a disciplinada e obsessiva consciência. Que chatice, um sacana como eu nem a liberdade de ser Mau pode ter. A bondade arrepiante imiscui?se e dá-se ares de comprometida. Diabos a levem, quero trocidar-lhes as liberdades, as facilidades, as arrogâncias, quero rasgar-lhes o ventre e puxar-lhes a entranhas.

Malditos sejam...

Não posso ser Mau, não me está cá dentro.

Mal se sai um pouquito da comummente considerada razoabilidade, e logo vêm eles com o dedo apontado. Ainda por cima fica-se esmagado com um sentido de pecado. Míseros abutres. A censura da putrefacta inquisição sempre a ditar as febris regras. Não pode um homem ser livre e já de pecado está escarrado.

Naqueles tempos eram os homens mais humildes e fraternos. Podia-se sempre confiar e sempre contar com a sua presença construtiva. Agora, vá um homem necessitar e não ter contrapartidas e, já na borda da valeta, terá de rastejar.

Não se entenda nunca que estes protestos se inserem no tempo presente, nestes momentos em ocorrência, são antes manifestações intemporais. Já em tempos ancestrais se dedicava o avô primeiro a especulações e a reclamações sobre as virtudes, e o estar do homem entre os seus. Achava ele que já era tempo de deixarem o mundo das bestas e se tornarem mais conciliáveis com os semelhantes. Julgava ele que o futuro se encarregaria de repor a justa ordem. Não sabia que a ordem humana, mais do que fruto dum progresso, é um atributo metafísico carente de visão global, facilmente escassa, parcamente ao alcance do comum mortal. Impõe-se a necessidade de uma consciência mais vasta, mais auto?analisável, mais humilde e menos orgulhosa. Não se entenda nunca essa humildade necessariamente como uma vantagem, e o mesmo orgulho como uma desvantagem, esse seria um equívoco lamentável: um e outro se devem conciliar na justa medida (ocorre questionar que é isso de justa medida!), não sejam nunca nem uma fácil arrogância, nem um lamentável enrugamento.
Aos homens falta uma saudável fraternidade, uma visão menos localizada, uma maior empatia e uma maior capacidade de globalizar e estender a sua consciência para além dos limites do imediato e do lucrativo.

O Homem tão facilmente se dispersa no mundo social, todo cheio de inutilidades, de mediocridades sempre cultivadas, de inseguros recursos pessoais por preguiças e esbanjamentos. Facilmente sacode o capote, e mais facilmente se dilui em questões espampanantes cujo proveito dificilmente poderá ser palpável.

Mas raios me levem, aqui me dou ares de profeta, de defensor de causas difíceis e trabalhosas! Nada mais lucrarei do que amochar as arrogâncias e os desferidos dedos acutilantes.

Um poeta da tristeza

De poetas já o mundo está cheio, da tristeza, já empestado, da alegria vai parco, ou iludido, da intemperança, nem apraz falar; porquê toda esta sensaboria, esta salada de palavras propícia à má digestão? Ora, já que sou triste pois que faça com ela alguma coisa, se me falhar a digestão, abundam os sais, frescos matam a sede no calor abafante das entranhas.
Por muito que escarafunche não encontro motivo para este mau estar - sou mentiroso pois claro - mas assim são os narradores, digo agraciados pela subtil arte da imaginação, amaciando pelas palavras os feitos, por vezes tão pouco honestos. Mas não deitem piropos, olhem-se e digam, não se acham escritores? Não, não!
Há, pois, têm medo! Não é para menos, isto de escrever o que não se pensa e pensar o que não se escreve é perigoso. Mais perigoso nas entrelinhas do que nas linhas propriamente. Nestes tempos de hipocrisia e falsas amabilidades não convirá certamente ser-se descuidado, a guilhotina é impiedosa, perdão, digo, a sociedade é intolerante,

Mas dizia eu de tristeza, eu o narrador, claro: o Outro é tão tolo que não se pode contar com ele.
A tristeza é uma espécie indefinida de estado de alma! Às vezes é momentânea, outras vezes é menos que tal, mais complicada, é uma espécie de estadia demorada, chegou um dia, um outro irá. Pode até ser um saudosismo, uma melancolia equivocadamente tida como uma serenidade tingida de felicidade.


Lembra-me uma carta que em tempos envei ao meu amigo Raskolnikov e que tanto e nada diz, mas talvez indicie alguma resposta.

"Meu contingente amigo

Leva-me o decoro e o meu convulso desejo de partilha, a dirigir-te estas hesitantes e grosseiras palavras. Certamente já de mim não esperavas mais do que o esquecimento. Uma hostil e hedionda consciência gravemente me ditou este parco resíduo de mim mesmo. O mais triste dos teus patéticos amigos. Francamente não tenhas esperanças nesta infectada correspondência!

Delinia-se-me a origem da minha tão insistentemente apontada tristeza! Acho (ehehehe) que ficou comprometida a minha capacidade de ser feliz ao ter tomado contacto com outra realidade com a qual não posso facilmente entrar em comunhão, mas que irremediavelmente comprometeu a minha visão passiva do mundo. Um mundo outro, de contornos não terminados, nem mesmo objectivos, algo quimérico, repleto de sombras e de ausências, bem como de professias e de esperanças - sendo este matéria, ocorre-me se não será o outro uma forma desviada de anti-matéria; doi-me a alma e afasta-se-me o espírito!

O caminho dos outros não pode nunca confundir-se com o meu, sendo o deles fácil na medida em que se pauta pela coordenação com o exterior; bem mais difícil o meu, imiscuído nos meandros soturnos dum interior muito menos que passivo.
Em busca do mundo, do objectivo e do significado, maltratado pelos equívocos ostensivamente prepetados por este mundo mais tangente, com contornos de realidade últimos, não já suficientes a um visionário gnóstico e, eternamente desacertado pelos episódios dum viver diário que, não é nunca suficiente para acalmar a agitação descaracterizada do meu frágil ser, sempre e, incomodantemente traumatizado pelas palavras rápidas dos acompanhantes de jornada.

Aqui vim e daqui me escapo, amigo meu, tão incompreensível quanto eu, fica-te com uma esperança deste teu desonesto e ineficaz companheiro.

Comentários de um enigmático especialista

"Podemos atrás verificar a materialização da tristeza no rosto escorrido dum homem magoado. Algures se iniciou a dramática busca que conduz este homem à profunda desconstrução que o assedia. Incansavelmente olha os homens, nos seus olhos sempre uma esperança, mas vai-se gastando, iludida sempre, pois a lado algum parece chegar. Longas ciências, minuciosas filosofias, sagradas histórias; todas obras de homens, nenhuma a sua obra! Perdido sempre, sempre a correr, em lado algum a paz e a serenidade. Um dia um, no noutro dia outro, estados de espírito vagos e distantes uns dos outros; perdido em si, múltiplo e sem fim.
Pudesse Deus livrá-lo de si próprio e mais descansado ficaria, diluído o seu olhar nas paisagens celestes, repousadas na longa planície que se estende aos pés da grande montanha."

O especialista,
Fulano tal,
Doutorado em ciências Terminadas

O sonho

Já tarde recolheu ao leito, manchado pela repentina mágoa. Uma dor, uma tristeza, uma solidão. Aprende-se sofregamente que algumas dores não podem jamais ser partilhadas, são formas de solidão sem contornos palpáveis, misturadas com imagens desfocadas dum sempre passado sem história, impossível de ser concretamente descrita.
Só a imaginada companhia dos Deuses, pode dar consolo a quem na tristeza parece encontrar um peito maternal, uma melancolia reconfortante.
Repousada a cabeça no leito, fechados os olhos, esticado o corpo dorido. Sons sem forma se recolhem entre sombras deslocantes que no espaço se sucedem.
Uma espécie não concretizada de lágrima acompanha-o da vigília ao espaço intemporal.

Já vai longe o início do sono. Aos pés dum anfitiatro colocado até ao infinito, um altar flutuante contém sobre si o Grande Livro. De mãos abertas, em geito de cruz, faz das palavras mensagens com destino ao infinito, até ao último dos ouvintes. Postos à sua frente, todos cobertos por uma túnica arrastada. Nenhum deles com rosto, apenas personagens que estão ali à sua frente perfeitamente alinhados, de cabeças erguidas, uma ordem eterna.
Ao seu lado, o António Vieira, humilde e atencioso, em vestimenta de acólito, executanto eficazmente os gestos do culto, recolhendo atenciosamente as ideias da santa homilia, um dia necessárias para falar aos peixes, já que aos homens pouco adiantará fazê-lo.
Um Homem sempre tem de ter discípulos, o eterno retorno dum estereótipo cultivado pelos génios da solidão, exilados dum tempo que ainda não existe, perdidos nas consequências dum mundo onde abundam os abutres duma inquisição sempre ansiosa das suas carnes mutiladas.

Um homem escreve, um discurso sem ouvintes, um suplício repleto de dores, uma forma deslocada de vingança, resíduos dum escarro, um punhal violentamente desferido em peitos secos, sem arte - viventes por feitio.
Um homem escreve, no monte lança a lenha, no centro o ceptro onde amarrarão as suas ensanguentadas mãos. Pegarão fogo e assarão a sua carne que servirão no grande banquete dessa corja de abutres - raça infectada, náusea apodrecida.

Um som desfere no sonho uma cacetada, aturdido abre os olhos. Ainda amordaçados os olhos reparam que vem de um sonho... um sonho!!...
Encontros com a loucura - uma forma equivocada de arte.

Uma violenta dor de cabeça abala o seu existencialismo pouco tolerante, bifurcando as antes seguras razões.
Todo o homem busca o acordo inequívoco dos seus pares, mostrando, orgulhoso, o seu peito, forma última duma explicação para o seu direito sobre si mesmo.
Como se vê a braços com uma incrédula presença - não mais beneficiando daquela ingénua esperança, segundo a qual a boa vontade e o diálogo eram a salvação última para a humanidade - não sabe o que pensar, quando, distraído, e sem convicção, olha aqueles galos, fingindo rituais de vida, bicando aqui, bicando ali, galando agora, galando depois, cacarejando antes, cacarejando a seguir - bípedes com asas que não elevam aos céus, não fosse a tolice pesada e as aspirações tão duras quanto o peso das matérias primas do luxo ostensivo que exalam.

Ocorre-lhe uma lufada de repiques praguejados por uma arma automática que enche o espaço, constrangendo os tenros corações. Enchendo de esperança a sua muito característica estupidez. Só derrotável essa estupidez instituída a peso duma incomodativa ameaça, capaz de desviar a atenção da luxuria para o valor humano e para o sabor duma vida sistematicamente desperdiçada e abafada com inutilidades todas tão escusadas.
É-se tão estupido que já se duvida da própria existencia. Ocorrem à memória aqueles palermas que ostensivamente se impõem à audiência como que detentores de alguma forma inabalável de razão.
A inteligência é em muito uma construção - como pode da luxuria e do desperdício edificar-se algo tão menos que uma sumptuosa tolice.

Oh, distracção desfavorável, esqueci-me do ansiolitico, esta profissão de narrador absorve-me tanto, que me esqueço das minhas inconsequências psicológicas. Desde aquele dia em que dei em perturbado, passei a ficar encharcado de químicos, insistem que é uma forma de doença. Não percebo, acho-os tão pouco razoáveis que juraria que se livram de si mesmo nos ditos seres alterados.
Projectam-se os desconsolos da vida no bode expiatório, dá-se-lhe uma palmada no retirado, e ele que vá pastar para outras terras.
Mas deixai-me ser louco que com a loucura me entendo eu bem. Melhor antídoto não me acho capaz de forjar, dos venenos não pode o homem fugir quando sorrateiramente o atacam na fragilidade do sono. Na vigília há que achar a cura que enforque esses ignóbeis maus tratos - a loucura, pois claro, não será pior doença - eles assim lhe chamam - que outras tais que por aí andam e que tão fugazes são aos seus olhos, não as vendo já mais, porque contaminados já sem elas não passam. A má língua, a inveja, e a hipocrisia são por eles tão eximiamente utilizadas que a sinceridade e a boa vontade não parecem nunca mais favoráveis.

Credo que fastio, tantos livros lidos já me tornam no adorado D.Quixote; se não vou atrás dos moínhos de límpidas velas erguidas, amando-me ao mar, aos peixes melhores companheiros, mais atenciosos, mais humildes nos sermões um dia apregoados.


A loucura torna-se uma figura paradigmática, entenda-se não a "loucura" da psiquiatria mas antes a "loucura" da literatura.
Trata-se de duas "loucuras" distintas. Uma surgida dum diagnóstico apoiado num tendencialmente eficaz corpo de saber, sujeita à incorporação de substâncias químicas que a diluem e a esbatem. A outra criadora duma forma etérea, ou efémera, avessa às exigências desconcertantes dum sedentarismo social e intelectual, contrário ao nomadismo visionário inconformado do dito "louco".
Esta última "loucura" chega a ser a marca que distingue da multidão o ser engendrador de histórias, o seu construtor de aforismos, de equações, de fórmulas, de tratados. A muita dedicação e a figura distante e, muitas vezes desconcertante, e mesmo pouco cuidada, do artista, ou do cientista, afixa-lhe no frontispício a etiqueta tal como é identificado.
O ser dotado de sensibilidade artística chega a colocar na loucura o seu objectivo, ou porque é equivocadamente identificada com princípios sagrados, ou porque o vocabulário tem significados outros do que aqueles comumente encontrados e explanados nos dicionários. É que o escritor por vezes reconstroi as palavras correndo até o risco de ficar fora de sintonia com os seus congéneres.
A "loucura" não é afinal a loucura, mas antes uma palavra com novos e múltiplos significados, às vezes mesmo com um cunho de suicídio interminável, só acessíveis a alguns seres mergulhados nas águas turvadas da construção dos significados.
Ao sair da prisão do mundo social público, o louco ingressa na própria masmorra que é a materialização de si mesmo, isto, pelo que é visionável externamente. Interiormente embarca numa viagem ao mundo fantástico das imagens, dos sons e das ideias.

A invisibilidade do discurso, dizendo tudo aquilo que não diz, presenciando latentemente as mensagens linguísticas ou não, exteriorizadas pelo autor do texto. Sentenciando o escrevente a uma fuga dimanada de dentro de si, rasteirando-o, ultrapassando as suas conscientes habilidades - a sua técnica.
O louco psiquiátrico ofende pela persistência e profundidade do olhar, assustando os que se colocam no seu aparente alcance, ficando, assim, indefesos, ao dispor duma infiltração sobrenatural que rebusca os segredos intimo das gavetas constituintes do aparelho psíquico, eficazmente guardadas da luz do dia por um aparelho repressor sem medida, mas que pode defender do sobrenatural !?
Para muitos homens persiste a figura da loucura como um paradigma da verdade - o louco é aquele que escapa à delimitação do real, imposta por uma herança protectora, que ao pretender afastar o homem das suas angustias tangentes, ou de outra forma imateriais, o mergulhou numa teia que enrodilhou a sua visão verdadeira e pura das coisas do mundo, criando assim, não as coisas em si, mas uma imagem delas.

Compreender um autor é embarcar numa viagem sem regresso, aquilo que começa por ser a intenção inicial tornar-se-á cada vez mais distante. O crescimento de um autor não é nunca um caminho linear, ou verdadeiramente sustentado ou disciplinado. É antes uma sucessão imprevista de mutações, árduas batalhas, mesmo pesadas solidões, doseadas por estados suicidas ou de desorientação e de desagradada desconstrução porque, para penetrar no sentido mais intimo das coisas, o autor tem de se ver livre das imagens que lhe foram inculcadas pela educação, os limites impostos pela moral e pela ética, tem de perfurar as cascas criadas pela sua aprendizagem, para assim chegar finalmente ao objecto puro. Esta tarefa sempre inacabada conduz provavelmente a uma cruzada angustiantemente gratificante, que momentaneamente afasta dos outros e pode mesmo criar uma áurea de egoísmo, cinismo e falta de amor que não corresponde à alma do viajante. Provavelmente nesta viagem ao intimo do conhecimento muito se perderá, e uma nova imagem do mundo dificultará o pleno diálogo com o outro, pela diferente estrutura que configurará o conhecimento e as suas regras intrinsecas.
Estamos embarcados numa viagem insegura e sem portos visíveis.

Oh, Senhor, já me bate o coração, já me falta um copo quente de leite com chocolate e uma fatia de bolo fumegante. Tudo era mais simples quando o mundo era apenas o quintal onde brincava.

Assim sem mais conclusões do que no inicio, sem nada mais que uma loucura, ficam as considerações precárias e interrogativas - todas as obras ficam ao alcance do inacabado e do derrotável

terça-feira, 15 de julho de 2003

Ser Homem - Pensamentos furtivos

Ser Homem é uma experiência que muito perturba, quando nos meandros do crescimento se foi testemunha de intensos episódios cujo entendimento se escapa, fruto da pouca compreessão que se tem do mundo envolvente.

Um homem atormentado, povoado de equívocos, semeado de plantações, mantidas suspensas, prontas a desabrochar, ansiosas de alimento, adubo e água que as elevem da envolvência abafante duma terra ora seca ora alagada. Um sempre adiado ressurgir, um intoxicado assumir das formas próprias.
O mal do futuro equaciona-se na sua sempre adiada presença, projectado sempre para além do alcance, a perda duma oportunidade com consequências lamentáveis, se não devastadoras - um mal incontornável, um tormento devastador acabado às portas duma morte inevitável. Uma morte que parece sugerir uma intrigante dimensão de paz.

Engendra-se na revolução um ressurgir das forças dispersas nas lutas inebriantes do ser com o ser. Um afluxo de coragem que se eleva e veste de seriedade o homem emaranhado, contorcido nas questões sucessivas que o mantêm disperso e afastado do mundo contíguo a si próprio.

Claro que há revoluções e revoluções, escusado será prosseguir; um cheiro comprometedor pode misturar-se nos espaços! (Esta pode bem ser uma daquelas frases inúteis que na fogueira já desintegraram muitos homens).

A exploração do homem pelo homem é ferramenta próxima que sem darmos conta utilizamos abundantemente, camuflada por propósitos digníssimos, que de digníssimo pouco têm, mas será melhor acabar aqui, a fogueira já se refastela com a refeição próxima.

O mal de alguns homens consiste em insistirem em que qualquer coisa tem sempre alguma explicação, alguma função, algum interesse. Nada se assume sem uma intransigente racionalização, apaziguadora do espírito perturbado pela ignorância, assumida como uma enfermidade imposta pelo acto da existência. Viver torna-se uma trabalheira toda cheia de sobressaltos e incomodativas e eternas questões, tão distantes daqueles sábios homens que só se ocupam com o momento, expurgando do espírito essas tormentas dos ditos homens preocupados, que em tudo vêem uma consequência dum qualquer fenómeno.
Enfim, para se ser homem feliz é necessário aprender-se a viver com essa dita ignorância, obsessivamente tida como factor limitador do espaço, nas suas fronteiras interiores e exteriores.

Não seria de mais estabelecer um diferencial entre o Homem tido como corrente, e o outro, espécie de louco , repartido entre episódios do anterior e sucessões de uivantes Lobos das Estepes , ou ressonantes Leões, ora de barriga para cima, ora intempestivamente buscantes de alimento.
Haverá ainda, eventualmente, uma outra categoria de Homens, alienados sem opção, cansados do mundo e das desconcertantes exigências por ele solicitadas, exilados no seu interior ameno ou tempestivo, conforme o caso.

segunda-feira, 14 de julho de 2003

Eu já fui pequenino!

Um dia eu fui pequeno e brincava na rua, como todas as crianças.

Saltitava pelo quintal da minha casa, rebolava pela relva, corria incansavelmente, dava tiros com a minha arma feita de um tubo que havia sido um suporte duma bacia de quarto de banho. Uma arma era tudo o que eu queria, e aquela era mesmo boa. Não me recordo facilmente das outras crianças, mas claro que as havia, uma criança sozinha não é saudável. Os outros são sempre a nossa grande oportunidade de crescer e de repartir a nossa grande vitalidade.
Um dia fui para a escola, acho que era muito pequenino, não me lembro se gostei, mas devo ter gostado, tantos eram os ouvintes para as minhas fascinantes histórias.
Se gostei, devo ter deixado de gostar, ninguém aplaude as histórias fantásticas duma criança. Eu era gozado e empurrado. Apenas um grupo muito reduzido de meninos ficou meu amigo. Fazíamos parte da mesma fila de carteiras - era a fila dos meninos burros. Eu não era burro, mas eles não sabiam. Nunca me importei de lá estar, era a única fila onde tinha amigos.
Um dia em frente da escola o homem mau disse muitas coisas de que não me lembro. Nós estávamos formados como fazem os soldados, erguemos a mão direita e cantámos uma canção. Um dos meus amigos não levantou o braço e não cantou. Um dos meninos de outra fila que não a nossa boa fila dos burros, fez queixa e o homem mau bateu?lhe. Ele foi para o médico cheio de dores e com feridas - chorou muito e eu tive muita pena dele. Nesse dia compreendi que não estava sozinho, mas que devia ter cuidado. Fiquei com medo e deixei de contar tantas histórias. O meu amigo tinha a pele escura. Passei a brincar no mato sempre que me conseguia escapar. Um dia troquei uma navalha do meu pai por uma fisga. Não podia estar mais contente: agora, além de dar tiros, fazia barulho e caíam coisas quando os tiros lá chegavam.
Certo dia os meus pais não me deixaram ir para a escola. Fizeram um grande caso e estavam muito esquisitos. Nessa noite não dormi. Foi porreiro. Fomos todos para casa dum senhor. Passámos a noite a brincar, os nossos pais não nos chatearam. As mães estavam enfiadas na cozinha e os pais andavam lá fora. Eu descobri em cima duma mesinha uma pistola pequena que deitava lume quando se disparava, era uma chama muito bonita que ficava acesa até deixar de carregar o gatilho.
A noite foi muito luminosa e barulhenta, parecia que tinham ido todos à caça.
Ouviu-se um barulho muito alto e o mato à frente da casa começou todo a arder, foi tão bonito! De manhã veio um camião grande com muitos soldados a sério, tinham uma roupas porreiras e muitas caixinhas e uma pistola. Andavam sempre com uma espingarda e tinham um capacete de ferro.
A partir desse dia tudo foi diferente. Mais tarde mudámos de casa e toda a gente ficou cheia de medo. Às vezes ouviam-se tiros. Nas estradas havia muitos soldados. Um dia andava com o meu pai e numa barreira onde estavam uns soldados muito barulhentos passou um carro velho e não parou. Os soldados deram muitos tiros; uma porta do carro abriu-se e caiu um homem velho a deitar sangue. O meu pai tapou-me os olhos e saiu dali. Mas eu ainda vi. Ele pensa que não.
Todos os anos faziam uma grande feira na cidade. Haviam muitos pavilhões com brinquedos e máquinas e quadros e desenhos e comidas e luzes. Lembro-me dumas fontes muito grandes onde havia jactos de água que subiam muito alto e tinham muitas luzes que saiam da água. Lembro?me muito dum pavilhão onde estavam muitas fotografias e coisas escritas nas paredes. Quando fecho os olhos vejo uma fotografia onde havia ao longe uma casa sem janelas e portas, com as paredes todas furadas, a estrada toda cheia de lixo e na borda uma espécie de rio pequenino onde boiavam muitas coisas esquisitas; lembro?me dos cabelos cumpridos de mulher e dum braço que saia da água.
Deixei de ir à escola porque os meus pais tinham medo que eu ficasse aleijado.
Um dia viemos embora para outro país onde não havia tiros mas estava sempre a chover.
Os Habitantes dos Corpos e o Cavaleiro Andante

Naqueles saudosos tempos vivia lá para os lados da montanha um enigmático, saudável e austero cavaleiro. Possuidor dum magnífico cavalo de claros e firmes tons, sempre ligeiro na ponta robusta dos sólidos cascos.
As mais das vezes, passava recolhido na sua quinta, enfiada na reverdescente floresta, banhada numa das faces pela serenidade duma vasta lagoa, lambida noutra pela brisa marinha dum farto oceano ainda escasso de marinheiros.
Enfiado nas suas muitas imaginações, cavaleiro pródigo, todo cheio de histórias das imensas viagens, sempre longas e de saborosas paisagens, assim vivia, fazendo do viver um imenso laboratório onde testava a arte da vida, procurando tirar conclusões e engendrando outras formas de estar, sempre insaciavelmente, em busca duma mais substancial maneira de viver.
Nem sempre satisfeito com as suas vastas propriedades, via-se envolvido em perigosas conquistas ao mundo externo, progredindo cautelosamente pelos vastos territórios que o cercavam.
Assim ia, em busca dos alimentos, em busca dos tecidos, em busca dos livros. Guiado por uma espécie de carta onde ia fazendo acrescentos, uma bússola por si construída, e um coração cheio do orgulho de conquistador.

Progredindo pelo selvagem território lá ia, sempre ligeiro, sempre maravilhado pela fresca verdura. Aqui e ali se deparava com um nativo que logo, desconfiado, se resguardava atrás de algum arbusto, só de lá saindo passada a distância. Ele sempre sorridente, de suaves palavras, diplomata convicto, nada mais recebia do que uma redobrada desconfiança; a simpatia de estranho inspirava sempre cuidados. Naquelas terras a boa palavra impunha sempre redobrados cuidados, era muitas vezes sinónimo de má intensão. Simpatias de estranho, maus intuitos. Enfim, ao explorador sempre se apresentam agrestes as recepções, fado seu, imagem suscitadora de cuidadas considerações.

Eram longos os territórios, demorada a viagem, chegada finalmente ao seu destino.

Sempre pareciam inoportunas as raras visitas daquele estranho visitante, que a todos, pela sua impressionante serenidade, assustava.

Logo se acelerava o ritmo pasmacento daquela pequena cidade; de boca em boca se alongava a notícia, o cavaleiro de rosto sorridente havia uma vez mais chegado. Queira Deus que ao merceeiro não faltem as energias, que as suas astúcias não se tornem demora. Logo se vá para longe e não mais volte.
Os mais jovens vão, sorrateiramente, imaginando naquele ocasional visitante um mensageiro da boa nova. Valha o Senhor Deus! Tão indefesas são as criancinhas; ficam preocupados os pais, tão ajeitado era o estranho senhor a conversar com os seus delicados meninos; logo imaginavam a perversão das tenras ideias pelas ideias moribundas. Logo se temia a subtil revolta contra os costumes tão trabalhosamente mantidos entre gerações, mau grado as modernices que tantos custos lhe infligiam.
O cavaleiro lá se instalava na mercearia, encomendando um rol de mantimentos, fartos quanto bastasse para uma viagem ao outro mundo. Esquecia?se o merceeiro dos temores, e lá se enchia duma arregalada felicidade tão impudentemente espelhada no rosto.
Acaloradamente empreendia um discurso febril aconselhando as modernas conservas que vinham lá da capital, a frescura dos legumes, a viveza dos peixes, o tenro bife, a aromática pimenta. Saltavam na caixa as moedas reluzentes que tão bem faziam à saúde do mercador, ficando tão farto de alegrias.

Mandou que a tudo acondicionasse devidamente, por forma a não sofrer as agruras da viagem.

Como era hábito seu, lá partiu em exploração à única casa de livros que existia em redor. Eram saudáveis os volumes expostos, como que a convidar à Boa Educação; como convém aos Bons Costumes, Nada de livros difíceis, perturbantes dos tenros espíritos dos queridos filhos da cidade. Todos os bons autores, devidamente sancionados pelas legais entidades, eleitas pelo sufrágio universal, lá estavam convidando à saudável leitura.
O livreiro, que havia descoberto na intrigante figura, um cliente, como não havia no mundo outro igual, criara na cave uma escondida biblioteca, abastecida de alguns, poucos, volumes que, a serem descobertos pelas autoridades, lhe custariam seguramente fartos tormentos. Livros lá depositados eram negócio fechado, a bom dinheiro, valiam por muitos dos permitidos pela legal autoridade. A todos o cavaleiro de olhos cintilantes levava.
Parecia ao cavaleiro que a dita Boa Educação, não mais era do que uma fronteira que interditava as Ideias Abertas aos jovens alunos. Ideias julgadas por todos como um despropósito nada saudável, que incutia vícios, e ritmos perigosos a uma sociedade, propiciando atritos e contestações.
Esses dias eram motivo de redobrada felicidade para o livreiro; a sua sempre tão pouco visitada loja, enchia-se de crianças, que buscavam o contador de histórias. De entre eles se erguia um rol de novos leitores, tão intensamente desejados.

Vendo-se, assim, tão cercado de ouvintes, lá começava a contar uma história toda cheia de peripécias. Com grandes gestos desenhava no ar a forma dos impressionantes cenários; a sua voz tomava o timbre de cada personagem, o volume acutilava os desfechos, tonificava as palavritas, orgulhava as palavras, acerbava as palavronas. Ia assim dizendo que nem tudo os livros reflectiam, especialmente aqueles que lhes eram facultados. Muitas vezes eram alegorias que convidavam à meditação.
Os educadores, mortificados, viam com grandes apreensões aquele apego dos educandos, que tanto lhes escapavam perante os saudáveis conselhos, e tão facilmente se chegavam ao inquietante personagem. Secretamente sofriam atrozes invejas pelo poder de atracção de tão fácil orador - só a custos e reprimendas ganhavam a atenção dos pequenos ouvintes.
Inicio do meu Blog...