quarta-feira, 16 de julho de 2003

Um gajo bera

Demorados e longínquos tempos, tempos de brandura, de ingenuidade, de encaixe - Eu era um tipo Bom! Agora já não sou um tipo bom, agora sou um gajo Mau! Completamente bera, irascível, prepotente.
Naqueles tempos acreditava na sinceridade, na amizade, nos belos e sensíveis gestos. Agora sou um eremita, longínquo, a milhas de qualquer amabilidade hipócrita.
Gostava de ser simpático, era todo cheio de amabilidades - coisa lamentável! Agora sou frio, um cara de pau, um guerreiro incontornável, em suma, finalmente sou um sacana dum gajo mesmo mau!

Vou dar cabo dos tipos, raios os partam. Não se pode ser bom e cheio de amor. Vomitam anátemas pegajosos, repelentes e viscosas substâncias mal cheirosas, cheias de pelos, de sangues, de merdas nauseabundas.

Não sei bem como o faça. Enche-se-me o rosto dum sorriso sádico. Antigamente eu era tão somente um lamentável masoquista, sempre disposto a sofrer as arrogâncias e as más educações! Venham os novos tempos e o homem chegará à Lua. Oh Júlio, quão distantes os teus contos visionários. Oh Verne, pudesse eu ter um poucochito da tua mestria e já na Lua estaria, distante destes cabrões!

Já a imagem sempre tensa da morte não me chega como retaliação - fácil coisa, algo de mais apetitoso se impõe; um trote de tiros de caçadeira nas pernas desses coisos. Aqueles deliciosos buracos a escorrerem debandas de sangue envenenado. Aqueles atrozes gritos. Oh Deus, que me dão escrúpulos e me arrependo de ser Mau.

Primeiro será necessário fazer uma minuciosa intervenção cirúrgica - extaiam-me a disciplinada e obsessiva consciência. Que chatice, um sacana como eu nem a liberdade de ser Mau pode ter. A bondade arrepiante imiscui?se e dá-se ares de comprometida. Diabos a levem, quero trocidar-lhes as liberdades, as facilidades, as arrogâncias, quero rasgar-lhes o ventre e puxar-lhes a entranhas.

Malditos sejam...

Não posso ser Mau, não me está cá dentro.

Mal se sai um pouquito da comummente considerada razoabilidade, e logo vêm eles com o dedo apontado. Ainda por cima fica-se esmagado com um sentido de pecado. Míseros abutres. A censura da putrefacta inquisição sempre a ditar as febris regras. Não pode um homem ser livre e já de pecado está escarrado.

Naqueles tempos eram os homens mais humildes e fraternos. Podia-se sempre confiar e sempre contar com a sua presença construtiva. Agora, vá um homem necessitar e não ter contrapartidas e, já na borda da valeta, terá de rastejar.

Não se entenda nunca que estes protestos se inserem no tempo presente, nestes momentos em ocorrência, são antes manifestações intemporais. Já em tempos ancestrais se dedicava o avô primeiro a especulações e a reclamações sobre as virtudes, e o estar do homem entre os seus. Achava ele que já era tempo de deixarem o mundo das bestas e se tornarem mais conciliáveis com os semelhantes. Julgava ele que o futuro se encarregaria de repor a justa ordem. Não sabia que a ordem humana, mais do que fruto dum progresso, é um atributo metafísico carente de visão global, facilmente escassa, parcamente ao alcance do comum mortal. Impõe-se a necessidade de uma consciência mais vasta, mais auto?analisável, mais humilde e menos orgulhosa. Não se entenda nunca essa humildade necessariamente como uma vantagem, e o mesmo orgulho como uma desvantagem, esse seria um equívoco lamentável: um e outro se devem conciliar na justa medida (ocorre questionar que é isso de justa medida!), não sejam nunca nem uma fácil arrogância, nem um lamentável enrugamento.
Aos homens falta uma saudável fraternidade, uma visão menos localizada, uma maior empatia e uma maior capacidade de globalizar e estender a sua consciência para além dos limites do imediato e do lucrativo.

O Homem tão facilmente se dispersa no mundo social, todo cheio de inutilidades, de mediocridades sempre cultivadas, de inseguros recursos pessoais por preguiças e esbanjamentos. Facilmente sacode o capote, e mais facilmente se dilui em questões espampanantes cujo proveito dificilmente poderá ser palpável.

Mas raios me levem, aqui me dou ares de profeta, de defensor de causas difíceis e trabalhosas! Nada mais lucrarei do que amochar as arrogâncias e os desferidos dedos acutilantes.

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