quarta-feira, 16 de julho de 2003

Encontros com a loucura - uma forma equivocada de arte.

Uma violenta dor de cabeça abala o seu existencialismo pouco tolerante, bifurcando as antes seguras razões.
Todo o homem busca o acordo inequívoco dos seus pares, mostrando, orgulhoso, o seu peito, forma última duma explicação para o seu direito sobre si mesmo.
Como se vê a braços com uma incrédula presença - não mais beneficiando daquela ingénua esperança, segundo a qual a boa vontade e o diálogo eram a salvação última para a humanidade - não sabe o que pensar, quando, distraído, e sem convicção, olha aqueles galos, fingindo rituais de vida, bicando aqui, bicando ali, galando agora, galando depois, cacarejando antes, cacarejando a seguir - bípedes com asas que não elevam aos céus, não fosse a tolice pesada e as aspirações tão duras quanto o peso das matérias primas do luxo ostensivo que exalam.

Ocorre-lhe uma lufada de repiques praguejados por uma arma automática que enche o espaço, constrangendo os tenros corações. Enchendo de esperança a sua muito característica estupidez. Só derrotável essa estupidez instituída a peso duma incomodativa ameaça, capaz de desviar a atenção da luxuria para o valor humano e para o sabor duma vida sistematicamente desperdiçada e abafada com inutilidades todas tão escusadas.
É-se tão estupido que já se duvida da própria existencia. Ocorrem à memória aqueles palermas que ostensivamente se impõem à audiência como que detentores de alguma forma inabalável de razão.
A inteligência é em muito uma construção - como pode da luxuria e do desperdício edificar-se algo tão menos que uma sumptuosa tolice.

Oh, distracção desfavorável, esqueci-me do ansiolitico, esta profissão de narrador absorve-me tanto, que me esqueço das minhas inconsequências psicológicas. Desde aquele dia em que dei em perturbado, passei a ficar encharcado de químicos, insistem que é uma forma de doença. Não percebo, acho-os tão pouco razoáveis que juraria que se livram de si mesmo nos ditos seres alterados.
Projectam-se os desconsolos da vida no bode expiatório, dá-se-lhe uma palmada no retirado, e ele que vá pastar para outras terras.
Mas deixai-me ser louco que com a loucura me entendo eu bem. Melhor antídoto não me acho capaz de forjar, dos venenos não pode o homem fugir quando sorrateiramente o atacam na fragilidade do sono. Na vigília há que achar a cura que enforque esses ignóbeis maus tratos - a loucura, pois claro, não será pior doença - eles assim lhe chamam - que outras tais que por aí andam e que tão fugazes são aos seus olhos, não as vendo já mais, porque contaminados já sem elas não passam. A má língua, a inveja, e a hipocrisia são por eles tão eximiamente utilizadas que a sinceridade e a boa vontade não parecem nunca mais favoráveis.

Credo que fastio, tantos livros lidos já me tornam no adorado D.Quixote; se não vou atrás dos moínhos de límpidas velas erguidas, amando-me ao mar, aos peixes melhores companheiros, mais atenciosos, mais humildes nos sermões um dia apregoados.


A loucura torna-se uma figura paradigmática, entenda-se não a "loucura" da psiquiatria mas antes a "loucura" da literatura.
Trata-se de duas "loucuras" distintas. Uma surgida dum diagnóstico apoiado num tendencialmente eficaz corpo de saber, sujeita à incorporação de substâncias químicas que a diluem e a esbatem. A outra criadora duma forma etérea, ou efémera, avessa às exigências desconcertantes dum sedentarismo social e intelectual, contrário ao nomadismo visionário inconformado do dito "louco".
Esta última "loucura" chega a ser a marca que distingue da multidão o ser engendrador de histórias, o seu construtor de aforismos, de equações, de fórmulas, de tratados. A muita dedicação e a figura distante e, muitas vezes desconcertante, e mesmo pouco cuidada, do artista, ou do cientista, afixa-lhe no frontispício a etiqueta tal como é identificado.
O ser dotado de sensibilidade artística chega a colocar na loucura o seu objectivo, ou porque é equivocadamente identificada com princípios sagrados, ou porque o vocabulário tem significados outros do que aqueles comumente encontrados e explanados nos dicionários. É que o escritor por vezes reconstroi as palavras correndo até o risco de ficar fora de sintonia com os seus congéneres.
A "loucura" não é afinal a loucura, mas antes uma palavra com novos e múltiplos significados, às vezes mesmo com um cunho de suicídio interminável, só acessíveis a alguns seres mergulhados nas águas turvadas da construção dos significados.
Ao sair da prisão do mundo social público, o louco ingressa na própria masmorra que é a materialização de si mesmo, isto, pelo que é visionável externamente. Interiormente embarca numa viagem ao mundo fantástico das imagens, dos sons e das ideias.

A invisibilidade do discurso, dizendo tudo aquilo que não diz, presenciando latentemente as mensagens linguísticas ou não, exteriorizadas pelo autor do texto. Sentenciando o escrevente a uma fuga dimanada de dentro de si, rasteirando-o, ultrapassando as suas conscientes habilidades - a sua técnica.
O louco psiquiátrico ofende pela persistência e profundidade do olhar, assustando os que se colocam no seu aparente alcance, ficando, assim, indefesos, ao dispor duma infiltração sobrenatural que rebusca os segredos intimo das gavetas constituintes do aparelho psíquico, eficazmente guardadas da luz do dia por um aparelho repressor sem medida, mas que pode defender do sobrenatural !?
Para muitos homens persiste a figura da loucura como um paradigma da verdade - o louco é aquele que escapa à delimitação do real, imposta por uma herança protectora, que ao pretender afastar o homem das suas angustias tangentes, ou de outra forma imateriais, o mergulhou numa teia que enrodilhou a sua visão verdadeira e pura das coisas do mundo, criando assim, não as coisas em si, mas uma imagem delas.

Compreender um autor é embarcar numa viagem sem regresso, aquilo que começa por ser a intenção inicial tornar-se-á cada vez mais distante. O crescimento de um autor não é nunca um caminho linear, ou verdadeiramente sustentado ou disciplinado. É antes uma sucessão imprevista de mutações, árduas batalhas, mesmo pesadas solidões, doseadas por estados suicidas ou de desorientação e de desagradada desconstrução porque, para penetrar no sentido mais intimo das coisas, o autor tem de se ver livre das imagens que lhe foram inculcadas pela educação, os limites impostos pela moral e pela ética, tem de perfurar as cascas criadas pela sua aprendizagem, para assim chegar finalmente ao objecto puro. Esta tarefa sempre inacabada conduz provavelmente a uma cruzada angustiantemente gratificante, que momentaneamente afasta dos outros e pode mesmo criar uma áurea de egoísmo, cinismo e falta de amor que não corresponde à alma do viajante. Provavelmente nesta viagem ao intimo do conhecimento muito se perderá, e uma nova imagem do mundo dificultará o pleno diálogo com o outro, pela diferente estrutura que configurará o conhecimento e as suas regras intrinsecas.
Estamos embarcados numa viagem insegura e sem portos visíveis.

Oh, Senhor, já me bate o coração, já me falta um copo quente de leite com chocolate e uma fatia de bolo fumegante. Tudo era mais simples quando o mundo era apenas o quintal onde brincava.

Assim sem mais conclusões do que no inicio, sem nada mais que uma loucura, ficam as considerações precárias e interrogativas - todas as obras ficam ao alcance do inacabado e do derrotável

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