quarta-feira, 16 de julho de 2003

Um poeta da tristeza

De poetas já o mundo está cheio, da tristeza, já empestado, da alegria vai parco, ou iludido, da intemperança, nem apraz falar; porquê toda esta sensaboria, esta salada de palavras propícia à má digestão? Ora, já que sou triste pois que faça com ela alguma coisa, se me falhar a digestão, abundam os sais, frescos matam a sede no calor abafante das entranhas.
Por muito que escarafunche não encontro motivo para este mau estar - sou mentiroso pois claro - mas assim são os narradores, digo agraciados pela subtil arte da imaginação, amaciando pelas palavras os feitos, por vezes tão pouco honestos. Mas não deitem piropos, olhem-se e digam, não se acham escritores? Não, não!
Há, pois, têm medo! Não é para menos, isto de escrever o que não se pensa e pensar o que não se escreve é perigoso. Mais perigoso nas entrelinhas do que nas linhas propriamente. Nestes tempos de hipocrisia e falsas amabilidades não convirá certamente ser-se descuidado, a guilhotina é impiedosa, perdão, digo, a sociedade é intolerante,

Mas dizia eu de tristeza, eu o narrador, claro: o Outro é tão tolo que não se pode contar com ele.
A tristeza é uma espécie indefinida de estado de alma! Às vezes é momentânea, outras vezes é menos que tal, mais complicada, é uma espécie de estadia demorada, chegou um dia, um outro irá. Pode até ser um saudosismo, uma melancolia equivocadamente tida como uma serenidade tingida de felicidade.


Lembra-me uma carta que em tempos envei ao meu amigo Raskolnikov e que tanto e nada diz, mas talvez indicie alguma resposta.

"Meu contingente amigo

Leva-me o decoro e o meu convulso desejo de partilha, a dirigir-te estas hesitantes e grosseiras palavras. Certamente já de mim não esperavas mais do que o esquecimento. Uma hostil e hedionda consciência gravemente me ditou este parco resíduo de mim mesmo. O mais triste dos teus patéticos amigos. Francamente não tenhas esperanças nesta infectada correspondência!

Delinia-se-me a origem da minha tão insistentemente apontada tristeza! Acho (ehehehe) que ficou comprometida a minha capacidade de ser feliz ao ter tomado contacto com outra realidade com a qual não posso facilmente entrar em comunhão, mas que irremediavelmente comprometeu a minha visão passiva do mundo. Um mundo outro, de contornos não terminados, nem mesmo objectivos, algo quimérico, repleto de sombras e de ausências, bem como de professias e de esperanças - sendo este matéria, ocorre-me se não será o outro uma forma desviada de anti-matéria; doi-me a alma e afasta-se-me o espírito!

O caminho dos outros não pode nunca confundir-se com o meu, sendo o deles fácil na medida em que se pauta pela coordenação com o exterior; bem mais difícil o meu, imiscuído nos meandros soturnos dum interior muito menos que passivo.
Em busca do mundo, do objectivo e do significado, maltratado pelos equívocos ostensivamente prepetados por este mundo mais tangente, com contornos de realidade últimos, não já suficientes a um visionário gnóstico e, eternamente desacertado pelos episódios dum viver diário que, não é nunca suficiente para acalmar a agitação descaracterizada do meu frágil ser, sempre e, incomodantemente traumatizado pelas palavras rápidas dos acompanhantes de jornada.

Aqui vim e daqui me escapo, amigo meu, tão incompreensível quanto eu, fica-te com uma esperança deste teu desonesto e ineficaz companheiro.

Comentários de um enigmático especialista

"Podemos atrás verificar a materialização da tristeza no rosto escorrido dum homem magoado. Algures se iniciou a dramática busca que conduz este homem à profunda desconstrução que o assedia. Incansavelmente olha os homens, nos seus olhos sempre uma esperança, mas vai-se gastando, iludida sempre, pois a lado algum parece chegar. Longas ciências, minuciosas filosofias, sagradas histórias; todas obras de homens, nenhuma a sua obra! Perdido sempre, sempre a correr, em lado algum a paz e a serenidade. Um dia um, no noutro dia outro, estados de espírito vagos e distantes uns dos outros; perdido em si, múltiplo e sem fim.
Pudesse Deus livrá-lo de si próprio e mais descansado ficaria, diluído o seu olhar nas paisagens celestes, repousadas na longa planície que se estende aos pés da grande montanha."

O especialista,
Fulano tal,
Doutorado em ciências Terminadas

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